Péricles Pinheiro Machado Jr.2 Marina Ferreira da Rosa Ribeiro3
Resumo: Neste ensaio discutimos a concepção de linguagem de sobrevivência para designar o modo de comunicação singular e solitário que uma pessoa produz para dar conta de turbulências emocionais vividas em estado de desamparo. Partimos de uma discussão sobre os limites da linguagem como fenômeno paradoxalmente impessoal e interpessoal, que introduz no campo analítico uma dialética fundamental para engendrar com cada analisando uma linguagem de reconhecimento capaz de veicular a intimidade da experiência. Para isso, propomos um diálogo com textos de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira e Tomas Ogden acerca das possibilidades da comunicação analítica nos limites próprios das formulações verbais.
Palavras-chave: linguagem, comunicação, singularidade, reconhecimento, interpretação
. 1 O artigo é parte da pesquisa de doutoramento de Péricles P. Machado Jr. no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp), sob orientação de Marina F. R. Ribeiro. Os autores agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa de doutorado que financia o projeto de pesquisa.
. 2 Psicólogo e psicanalista. Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Pesquisador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic). Doutorando pela Universidade de São Paulo (usp). Mestre em psicologia social pela usp e pela Birkbeck College, Universidade de Londres.
. 3 Professora doutora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Membro fundador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic). Membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
No livro e lost language of cranes (1986), do qual extraio o título deste artigo, o escritor norte-americano David Leavitt narra os conflitos familiares vividos por um jovem de classe média, Philip, que certo dia, acidentalmente, assusta-se ao se dar conta da força impetuosa de suas paixões e de sua inca- pacidade de encontrar palavras para descrever a tempestade emocional que o aflige.Outra personagem desse romance, Jerene, doutoranda em filosofia da linguagem na Universidade de Stanford, também se depara acidentalmente com algo que afeta radicalmente o rumo de sua vida e a direção de suas investigações acadêmicas. Durante uma pesquisa na biblioteca da universidade, Jerene encontra um artigo psicanalítico que descreve o caso de uma criança chamada Michel. À medida que lê a síntese do relato, ela sente despertar dentro de si uma angústia que a toma de assalto e a faz mergulhar no texto como se adentrasse um universo paralelo, que guarda inúmeras semelhanças com algo que ela mesma intuía silenciosamente sobre si.
Filho de uma adolescente com histórico de problemas mentais, Michel vive abandonado em um cubículo nos subúrbios de Nova Iorque enquanto a mãe vagueia pelas ruas da cidade, imersa em sua loucura privada. Sobre o pai, nada sabemos. Os cuidados para com o bebê eram precários. A despeito dessa precariedade, Michel sobrevive. Ele chega aos 2 anos de idade sem aprender a falar: grita, berra, chora, emite sons apavorantes, que atravessam as paredes e chegam até os vizinhos, os quais frequentemente tentam intervir, embora sem sucesso.
Certa vez, a mãe sai de casa e desaparece por dias, deixando Michel à própria sorte. Assolado pelo terror do desamparo, ele grita a plenos pulmões. Os vizinhos batem à porta, ninguém responde. Queriam, a princípio, que o garoto se calasse e deixasse de importuná-los. Depois de muito chorar e per- turbar longamente o sossego dos vizinhos, em determinado momento Michel emudece. O som é interrompido subitamente. Nada mais ecoa de dentro do cubículo sujo e precário. Os vizinhos estranham. O silêncio ensurdecedor torna-se então motivo de inquietação e alarme. Desconfiam que o garoto esteja desacompanhado, talvez morto. A polícia e a assistência social são acionadas. Encontram Michel esquálido, absorto, não obstante vivo. Sozinho em uma espécie de berço mal-ajambrado, ele se segura na grade e parece envolvido em uma espécie de transe. De vez em quando, seu rosto se volta para a janela e ele emite grunhidos que soam como arranhões metálicos. A assistente social observa com curiosidade. Ao olhar através da janela, ela vê um pátio de construção onde estão instaladas gruas gigantescas, das quais pendem bolas de demolição. Conforme as gruas acendiam os faróis, basculavam os eixos metálicos, produziam sons ferozes dos motores e arremessavam as bolas contra as ruínas de um prédio antigo, o pequeno Michel as imitava com movimentos bruscos de braços, pequenos guinchos estridentes produzidos por entre os dentes e sons de estalo feitos com a língua.
Michel é levado para um abrigo. Os anos passam, e ele chega à adolescência sempre imerso em um estado de selvagem isolamento. É nesse ponto que ele começa a ser acompanhado pela psicanalista que havia publicado o artigo encontrado acidentalmente por Jerene. Michel não interage com outras crianças, não se interessa por outros brinquedos. O mundo que ele conhecia limitava-se aos movimentos robóticos dos braços e aos sons de apelo às gruas que, tal qual um útero metálico, lhe haviam fornecido um ponto de apoio e provido um contorno sensorial para seu terror sem palavras. À medida que Jerene lê o trabalho, algumas perguntas lhe vêm à mente:
“Como eram esses sons? Como será que ele se sentia?” A linguagem pertencia unicamente a Michel e agora estava para sempre perdida para ela [Jerene]. Quão maravilhosas, quão grandiosas aquelas gruas devem ter parecido a Michel em comparação com as pequenas e desajeitadas criaturas que o rodeavam. Pois cada um, a seu modo, ela acreditava, encontra aquilo que deve amar e o ama. A janela se torna um espelho. Seja lá o que amamos, isso é quem somos. (Leavitt, 1986, p. 177).
Valho-me dessa recordação literária como prelúdio para delinear o território em que desenvolvo este trabalho. Tenho em mente o impacto que a leitura do romance de Leavitt teve em minha vida, especialmente por haver nela encontrado ressonâncias de uma experiência que me parecia bastante familiar durante a adolescência: as sensações de inundação passional e o sentimento de frustração ao tentar me expressar em um idioma sem referências conhecidas, uma língua que em grande medida não encontrava tradutores nem intérpretes com quem fosse possível desenvolver uma conversa verdadeira.
A breve descrição de uma personagem que acredito ser fictícia, Michel, o menino das gruas, oferece imagens que nos servem para pensar o trabalho psicanalítico como processo de (r)estabelecimento de vínculos humanos, intra e intersubjetivos, por meio da linguagem. Vejo Michel como uma metáfora para o sentimento de solidão, isolamento e sofrimento que acompanha todo aquele que busca na análise um outro que seja capaz de compreender sua linguagem perdida das gruas. Costumo designar esse fenômeno como linguagem de sobrevivência, para indicar um modo de comunicação singular e solitário que uma pessoa produz para dar conta de turbulências emocionais vividas em estado de desamparo, isto é, nos limites do quanto se pode contar (ou não) com a presença do outro.
No contato cotidiano, essa linguagem passa despercebida. As pessoas conversam entre si, aprendem expressões, slogans, usam palavras da moda, dos memes, dos posts de Facebook e comentários de Instagram. Falam o que ouviram dizer e se expressam por meio da repetição mimética como modo de aplacar o vazio que ameaça se revelar nos momentos de descuido. Podem falar aquilo que os outros querem ouvir, contam sobre seus fins de semana com amigos, falam com os pais por telefone, descrevem seus sintomas quando vão ao médico.
A linguagem a que me refiro é útil para as operações fundamentais da vida prática, mas carece da vitalidade necessária para formar vínculos emocionais entre elementos e engendrar novas concepções mobilizadoras de sentido, para si e para o outro. A linguagem de sobrevivência recorre à paralisia de formulações prontas e encapsuladas para dar conta da oscilação que se agita silenciosamente no íntimo de suas palavras. Nesse sentido, ela revela o “sentimento de desespero que influencia a vida de uma pessoa” fadada a buscar na reorganização incessante de esquemas de linguagem um senso de pertencimento por meio da adesão ao conhecido, com “um sentido muito restrito de futuro que essas representações carregam com elas” (Bollas, 1992, p. 56).
A língua vernácula é aprendida e pode mesmo ser dominada com maestria. Mas quando uma pessoa chega ao consultório para uma primeira conversa com o psicanalista, acontece algo que parece iluminar os contornos dessa linguagem única. Nela detectamos os vestígios de uma linguagem mais primitiva, cujas manifestações soam como palavras, mas carecem do poder e do significado das palavras que auxiliam no pensamento e na comunicação. Elas não são produtos da mente (elementos alfa), mas se parecem mais com algo viscoso, como lágrimas ou outras excreções corporais, ou mesmo o ar quente e vazio de um suspiro pesado. (Reiner, 2018, p. 51)
Os primeiros indícios são percebidos em sua atitude diante do desconhecido da sala de análise. Certas pessoas chegam e falam sem parar. Algumas falam como se estivessem na farmácia, pedindo um remédio para tosse. Outras pronunciam palavras trêmulas, sedutoras, enigmáticas e sem destino. A linguagem de sobrevivência vai aos poucos emergindo no contraste com a sensibilidade do analista, que pode escutar naquele que o busca vestígios de palavras malformadas, murmúrios interrompidos, sons errantes em busca de abrigo. Há que ter respeito pela linguagem de sobrevivência, pois é no limite desta que se move o ímpeto que leva a pessoa a mais uma vez buscar ajuda, ainda que seja sua primeira experiência com um analista.
Como a personagem Jerene, pergunto-me com frequência quais seriam os sons originais, a vivência emocional mais bruta e verdadeira daquilo que o analisando expressa na forma das palavras que pronuncia, seus maneirismos idiossincráticos, suas entonações (que talvez sejam vestígios de identificações remotas), suas formas narrativas, suas conjugações pouco usuais, suas figuras de linguagem, ora brutas, ora mais sofisticadas. Como será que suas emoções são vividas, quando a linguagem disponível para o analisando naquele momento parece ser insuficiente ou demasiadamente rasurada para dar forma a suas experiências mais íntimas?
Os limites da linguagem
Ruth Malcolm enuncia de maneira extremamente simples que “o processo analítico é um processo de comunicação” (1989, p. 103). É certo que se trata de uma modalidade peculiar de comunicação, atravessada pela situação transferencial, pelas teorias que o analista tem em mente, pelas condições particulares de cada analisando. Como a personagem Michel, a pessoa que busca análise chega até nossos consultórios com uma organização linguística à qual temos acesso somente por meio de sua apresentação fenomenológica. Somos apresentados ao mundo interno do analisando por meio de suas verbalizações, mas também somos afetados por seu contexto extraverbal (Bakhtin, 2011), aqueles elementos singulares que caracterizam a estrutura de significação desse mundo interno com sua gramática afetiva particular.
Por outro lado, a fala do analista desperta no analisando respostas e reações emocionais às quais igualmente teremos acesso somente pela linguagem própria daquele que nos procura, uma linguagem que frequentemente se organiza como meio de resistência para dar conta de uma agitação emocional que se apoia no que for possível para encontrar alguma vazão. Como então estabelecemos com o analisando um canal de comunicação que possibilite o reconhecimento de sua singularidade a partir do estranhamento e das limitações próprias dessa mesma singularidade?
Como podemos aprender a linguagem de sobrevivência do analisando para engendrarmos uma linguagem de reconhecimento que seja igualmente única mas compartilhada pela dupla analítica?
Em um texto sobre a ética dos relacionamentos humanos, Stephen Frosh propõe um delineamento da experiência psicanalítica pelo vértice da dinâmica do contato entre duas mentes, analista e analisando, e de como as sutilezas que percorrem a formulação dessa dinâmica se revelam através da linguagem. Segundo o autor, a psicanálise em suas formas contemporâneas se interessa em como a fantasia adentra as relações humanas, como o sujeito pode se tornar um outro amado ou odiado para o outro, o que significa (ou como se sente) uma pessoa ao estar em conexão próxima e ao mesmo tempo conturbada com um outro, e em modos de articular e aliviar o mal-estar através da construção de relacionamentos que sejam abertos e, em importantes sentidos, verdadeiros. (2010, p. 127)
Nessa perspectiva, o reconhecimento do outro é tomado como um evento que envolve uma dinâmica ativa do encontro de duas pessoas, em que o movimento mútuo de se estender em direção ao outro tem o potencial de viabilizar a emergência ou a manifestação de algo que pode ser experimentado como verdade. O vocabulário do reconhecimento do outro perpassa a compreensão dos limites da linguagem como meio de expressão da experiência íntima de cada pessoa. Dentro do que chamei de linguagem de sobrevivência, encontramos com cada analisando o desafio de perscrutar as raízes de seu idioma pessoal, ao mesmo tempo que (delicadamente) fornecemos insumos para que seus recursos de comunicação se expandam, tendo o cuidado de não provocar uma perturbação além do que pode ser suportado no campo engendrado pela dupla.
Frosh traz para o debate a função que a linguagem desempenha na própria configuração da relação eu-outro. Desde sua fundação com Freud, a psicanálise reconhece a potência da palavra como elemento que ao mesmo tempo constitui e perturba a dinâmica intrapsíquica, mas também está interessada naquilo que fica de fora das possibilidades de simbolização, isto é, no “contínuo murmúrio do não linguístico ..., naquelas experiências que parecem nos escapar justamente quando estamos prestes a enunciá-las” (2010, p. 139).
Fico pensando no modelo do menino das gruas para refletir sobre os aspectos da linguagem própria do analisando, que derivam não apenas de suas possibilidades expressivas, no sentido de traduzir ou comunicar seus movimentos emocionais, mas também, em alguma medida, de algo que poderíamos designar como impessoal. Nascemos em um tecido linguístico que nos antecede e extrapola os limites de nossa compreensão, transcende tempo e espaço, lança-nos em contato direto com o desconhecido. Arnaldo Chuster introduz a discussão de que o campo das trocas simbólicas é mediado por símbolos heterônomos e símbolos autônomos. Os primeiros incluem toda a gama de “símbolos adquiridos da cultura dentro da qual o sujeito habita” e na qual “encontra ferramentas comuns a todos: os conceitos”. Por sua vez, “os símbolos autônomos são os criados pelo indivíduo ou o resultado do processamento psíquico que marca a subjetividade”. (2018, p. 55)
A apropriação daquilo que advém da cultura revela-se no fenômeno social que denominamos língua materna, nas malhas de significados linguísticos infinitos, nos signos e conceitos que organizam a dimensão impessoal da vida psíquica, visto que decorrem de sistemas que precedem a existência de cada indivíduo humano. Mas é nessa e através dessa malha que extraímos elementos para formular nossa linguagem pessoal, sempre de forma incompleta e precária. Frosh relaciona essa interface simbólica com o elemento impessoal a que aludi metaforicamente quando da apresentação da narrativa do menino das gruas:
Aquilo que é silenciado sustenta a fala, mas também é por ela excluído. É ainda a impessoalidade da fala que é importante aqui, pela qual se entende o modo como a linguagem funciona como um sistema que não está simplesmente à disposição dos falantes individuais, mas tem suas próprias regras, sua própria maneira de fazer as coisas. (2010, p. 139)
Somos produzidos pela palavra. Com a palavra precisamos nos articular, encontrar meios de expressão subjetivos (a dimensão dos símbolos autônomos, discutida por Chuster), mas para tanto precisamos recorrer a esse sistema com vida própria que independe e extrapola o desejo dos seres falantes. Frosh cita a poetisa inglesa Denise Riley para discutir esse núcleo impessoal que atravessa os sistemas linguísticos e cujas repercussões podem ser captadas na maneira como cada pessoa experimenta conexões e rupturas afetivas no contato com o outro. A exemplo disso, Riley observa “como a mais profunda intimidade junta o supostamente linguístico ao supostamente psíquico” (citada por Frosh, 2010, p. 11). Ambas as dimensões são indissociáveis, porém operam a partir de conjuntos infinitos com sucessões de signos, ou “protossímbolos individuais que vão sofrendo transformações até emergirem no campo de trocas simbólicas” (Chuster, 2018, p. 35). Mais que um antagonismo entre a linguagem que deriva das formas impessoais e aquela que decorre da experiência viva do sujeito humano, Riley propõe uma concepção de “palavras afetivas que nos habitam”, isto é, que possamos apreciar o fato de que “a linguagem se insinua dentro das pessoas e impõe a impessoalidade no coração de cada sujeito humano” (citada por Frosh, 2010, p. 139).
O elemento impessoal se revela na obra de Leavitt (1986) pela imagem da criança movimentando os braços e emitindo grunhidos como uma metáfora para os conflitos internos vividos pelas personagens Philip e Jerene, aprisionadas em um sistema linguístico insuficiente para traduzir as correntes emocionais que os arrastam para cada vez mais longe de seus anseios por afeto. Philip havia aprendido a falar coisas que as pessoas falam quando querem dizer o que pensam, mas não o que sentem. E percebe, para sua desgraça, mas também para sua eventual libertação, que passou a vida inteira reproduzindo uma linguagem extraída de um seio familiar árido e sem vida, uma fala incapaz de estabelecer vínculos afetivos. A linguagem como meio de comunicação supõe o reconhecimento da presença de duas pessoas abertas ao encontro. O analisando que se expressa em linguagem de sobrevivência pode ser capaz de dar indícios de seu sofrimento sem que isso represente para si, do ponto de vista emocional, uma experiência de comunicação – de troca com alguém percebido como outro. Segundo Anne Reiner, uma vez que a linguagem capaz de preencher a lacuna entre duas pessoas com mentes únicas e independentes reflete a capacidade de desenvolvimento da individuação, o paciente que não possui essa capacidade não sabe que está falando com um indivíduo separado fora do eu. (2018, p. 46)
O ofício psicanalítico nos coloca em condição de nos depararmos com as fronteiras, os limites e suas simetrias eu/outro, dentro/fora, intra/intersubjetivo, inconsciente/consciente, finito/infinito, isto é, o trabalho na cesura, conforme propõe Bion (1989). A dimensão da impessoalidade atravessa os processos de expressão humana, dado que estamos inseridos em um sistema linguístico que opera não apenas por sons, mas por silêncios, por afirmações e murmúrios, por elementos verbais, pré-verbais e não verbais. Ainda que impessoal, é somente por meio da linguagem que podemos experimentar a potência do acontecimento humano em suas expressões mais singulares e criativas. A intuição analítica traz consigo a possibilidade de auxiliar o analisando a navegar pelas imprecisões da linguagem para encontrar em sua própria voz algo que lhe comunique a mais íntima experiência de ser.
A comunicação analítica nos limites da linguagem
Como humano que somos, também o analista precisa se valer das possibilidades e limites da linguagem para estabelecer com cada analisando um idioma próprio, que ao mesmo tempo seja o meio de conexão afetiva e o indutor de novas conexões afetivas. Entre sons, palavras e pausas, algo se insinua a despeito do que poderíamos designar como uma intencionalidade da consciência no sentido fenomenológico. As experiências pessoais do analista em contato com o universo das expressões estéticas proveem elementos que podem sensibilizar e facilitar a captação de imagens e movimentos afetivos que se imiscuem na linguagem falada do analisando. A proposta freudiana de associação livre visa a introduzir no espaço analítico um elemento de liberdade radical. De nosso ponto de vista, tudo aquilo que o analisando diz e faz e a forma como o diz e o faz são recebidos como precipitações do inconsciente – portanto, fundamentais para o trabalho da escuta e do pensamento onírico. Na condição de um diálogo ativo, o analista recorre predominantemente à linguagem verbal para se comunicar com o analisando, “mas sabemos também que esse ideal nunca é completamente atingido, pois o tom de voz do analista muda, ele se movimenta ou fala de maneira que pode comunicar ao paciente mais do que ele gostaria”. (Malcolm, 1989, p. 110)
As inflexões, as modulações, a respiração, o barulho de objeto manuseados durante a sessão (como um lápis ou um copo), os goles d’água tomados para arrefecer ou fluidificar os pensamentos, os sons emitidos pelo corpo do analista, enfim, podem ser escutados pelo analisando como ruídos persecutórios ou provas flagrantes de elementos da verdade emocional que ainda não alcançou o estatuto representacional de palavra enunciada. Em todos os casos, esses elementos extraverbais se inscrevem na partitura da música que está sendo composta pela dupla analítica, alternando entre a harmonia e a cacofonia para dar contorno à experiência emocional vivida na sessão.
Em um trabalho recentemente publicado, Thomas Ogden discute a maneira como ele conversa com seus pacientes, pondo em pauta também os limites da linguagem e a função dos mal-entendidos como o elemento que, de um lado, desorganiza e, de outro, favorece o contato com a verdade emocional do analisando. Ele parte da constatação de que, “em todos os momentos de seu trabalho juntos”, analista e analisando “esbarram no fato de que o imediatismo de suas experiências vividas é incomunicável” (2018, p. 400). Aquilo que se experimenta nos limites da linguagem marca, portanto, uma hesitação inevitável: estamos ambos diante um do outro para desenvolver uma conversa a partir de elementos que de antemão são incomunicáveis. Ogden cita William James para descrever a paradoxal experiência de isolamento e abertura que caracteriza o contato entre duas mentes humanas:
Cada uma dessas mentes guarda seus próprios pensamentos para si mesma. Não há concessão ou intercâmbio entre elas. Nenhum pensamento sequer chega à presença direta de um pensamento em outra consciência pessoal que não a sua. Isolamento absoluto, pluralismo irredutível é a lei. ... As lacunas entre tais pensamentos [de duas pessoas] são as fendas mais absolutas da natureza. (James, citado por Ogden, 2018, p. 400)
Penso nessas fendas como um equivalente daquilo que assinala os limites da linguagem como meio de comunicação entre as pessoas. A distância que marca a separação entre analista e analisando é a premissa fundamental para que haja o encontro e o reconhecimento do outro em sua expressão mais radical. A separação, a distância entre a experiência vivida por cada pessoa na dupla analítica, não representa algo a ser superado, mas a própria condição para que desse encontro nasça a experiência de contato genuína. Penso nessa fenda como o espaço em que se pode acolher a experiência criativa por meio da construção de uma linguagem comum à dupla analítica, de tal forma que analista e analisando “sejam capazes de comunicar alguma coisa parecida com nossas experiências vividas através da reapresentação da experiência”. (Ogden, 2018, p. 400)
O que pode sustentar uma parceria criativa na sala de análise, considerando-se que estamos sempre nos limites da linguagem, nos limites da experiência emocional e nos limites da interpretação – essa curiosa tradução que opera na voz do analista e que vive ameaçada de causar perturbações cujos efeitos por vezes demoram a ser captados? Dito de outra forma, aquilo que o analisando nos apresenta em linguagem de sobrevivência tem sua razão de ser. Os mal-entendidos, os sub-entendidos e os não-entendidos revelam no diálogo analítico os vestígios de experiências que levaram uma pessoa a organizar por reflexo, instinto ou reprodução aquela linguagem que lhe é peculiar. Como no caso do menino das gruas, são as idiossincrasias e os sons imitativos que serviram um dia de ponto de apoio para dar contorno a uma experiência sem nome. Como as bolas de demolição que ganhavam impulso ao serem movimentadas pelas gruas para investir ferozmente contra os edifícios a serem destruídos, também a linguagem de sobrevivência do analisando abriga em sua estrutura uma força bruta que persiste a qualquer ameaça de desmonte. O núcleo que deve ser protegido é protegido a todo custo. É tanto o que impulsiona quanto o que refreia a possibilidade de contato com a verdade.
Ogden descreve algo semelhante ao afirmar que “‘a indisposição’ ou ‘a incapacidade’ de fazer o trabalho analítico quase sempre reflete o equivalente transferencial/contratransferencial do método desenvolvido na infância para proteger sua sanidade e sua própria vida, método que vejo com reverência e até admiração” (2018, p. 402). O respeito à linguagem de sobrevivência do analisando é, a meu ver, a condição mais fundamental para que sejam mobilizados os recursos necessários para escutar, através das idiossincrasias e maneirismos, os sons originais e a vivência emocional mais bruta e verdadeira daquilo que o analisando expressa na forma das palavras que consegue pronunciar. Nos limites da linguagem, o analisando experimenta a dor que muitas vezes não pode ser vivida, que se expressa em terminologias imitativas em busca de uma escuta que reconheça nessas limitações “as forças subjacentes que levaram o paciente a buscar ajuda na análise”. (Ogden, 2018, p. 402)
Nos limites da árida e por vezes desértica linguagem de sobrevivência do analisando, a fala do analista tem a função de reconectar fragmentos de sons originais, restituir-lhe pouco a pouco o orvalho emocional que poderá eventualmente evoluir para uma experiência de contato verdadeiro. As falas do analista designam sua escolha em lançar luz sobre determinado fragmento do encontro analítico em detrimento de outros, revelando, portanto, nossa condição de interlocutores nada isentos. Pérsio Nogueira, ao discutir o problema da comunicação no trabalho psicanalítico com adultos, adverte que as interpretações revelam uma intencionalidade do analista. ... Qual seja ela, não importa, no momento, para nosso problema. O significativo é que ela está presente, e pela sua presença dará significado e direção a todo o processo comunicativo que se estabelece. Por assim dizer, abrirá alguns canais de comunicação e simultaneamente fechará outros; remeterá as palavras e leituras a dado contexto e afastará de outros. (1993, p. 134)
A advertência enunciada por Pérsio Nogueira vai no sentido de explicitar a complexidade da situação analítica, dado que, no cruzamento das enxurradas transferenciais que atravessam e precisam ser acolhidas com a chegada do analisando, o analista é primordialmente colocado no lugar das figuras de autoridade que levaram o analisando a engendrar sua linguagem de sobrevivência. Ou seja, temos o desafio de desconstruir e reconstruir o tecido linguístico que envolve o analisando, tomando o cuidado de primeiro aprender os signos, os sintagmas, o léxico e a gramática característicos de sua língua estrangeira singular. O exercício da dúvida sistemática diante da fala do analisando pode auxiliar o analista em seu laborioso ofício de recuperação dos sentidos de cada linguagem de sobrevivência que lhe é apresentada a cada sessão de análise. Evocando mais uma vez as palavras sinceras de Pérsio Nogueira, possivelmente inspiradas em Bion:
O importante é fixar-nos no fato de que o universo emocional onde está inserida a palavra e o discurso podem contribuir para uma alteração marcante em seu significado e ser reveladores das mais diversas ansiedades. Isso nos deve levar a um extremo cuidado pelas consequências que se estabelecem para o lado da comunicação; ou seja, devemos ser cautelosos em acreditar que quando conversamos com alguém na mesma língua estamos falando das mesmas coisas. (1993, p. 144)
A dúvida como método de indagação dos sentidos produzidos pelas palavras do analisando pode aos poucos explicitar a experiência emocional a que tais formações linguísticas se referem, cuidando para preservar os radicais que conferem ao analisando seu senso de individualidade. Quando a fala do analista pende para tonalidades de afirmações certeiras, corre-se o risco de retirar do analisando a possibilidade de caminhar em direção ao encontro com sua verdade emocional:
Existe o perigo de enquadrar o paciente em um conjunto de interpretações. A capacidade de não saber é uma realização, e a função de não saber precisa desempenhar um papel explícito nas interpretações, transmitindo um elemento da sensibilidade analítica. Esse aspecto da técnica, descrito em termos da dialética da diferença, mitiga o perigo de a interpretação interferir na associação livre. (Nettleton, 2018, p. 139)
A dialética da diferença mencionada por Sarah Nettleton refere-se à proposta de Christopher Bollas de que a função de não saber também precisa alcançar representação psíquica na experiência com o analisando. Quando a dupla se apega apaixonadamente a um ponto de vista, ainda que este tenha sido a resultante de uma experiência emocional captada e reconhecida por ambos em determinado momento, enfatiza-se o corolário em detrimento do laborioso processo que possibilitou sua realização. Nesse sentido, Bollas propõe que se dê atenção e se enuncie ao analisando todo o espectro de fenômenos experimentados no campo analítico como recurso para dar representação àquilo que constitui a linguagem viva em pleno ato de ser concebida na sessão de análise. As concordâncias e discordâncias entre analista e analisando revelam os movimentos imprecisos engendrados pela fala, estabelecem um espaço de liberdade de expressão em que a dúvida tem a função de desvincular aquilo que a interpretação vincula. Nessa melodia singular entoada pela dupla, as tensões das certezas rígidas cedem lugar às palavras errantes. A livre associação, “que se situa em algum lugar entre o saber e o não saber”, poderá ganhar voz e abrir espaço para que a palavra seja experimentada em sua potência viva mais genuína, isto é, como linguagem de criação:
Como as palavras são usadas para expressar o que se passa na mente de uma pessoa, é possível considerá-las como uma forma de saber e como um procedimento vinculador. Mas quando alguém se propõe a dizer o que quer que lhe venha à cabeça, indiferente a quanto isso possa parecer bobo ou sem sentido, essa atitude evoca um princípio diferente: o do não saber e do desvincular. Talvez o pensamento influenciado, a reflexão profunda, o desreprimir de uma memória surjam de um estado de tensão mais favorável entre o processo de vincular e desvincular. (Bollas, 1992, p. 84)
Em linhas paralelas, Ogden (2018) nota que as falas que procuram descrever aquilo que se observa na sessão podem ajudar o analisando a ter sua atenção despertada para elementos desprovidos de significados predefinidos, elementos vazados que poderão ser ocupados com expressões da experiência própria do analisando naquele instante, no imediato da experiência vivida. Como no caso do menino das gruas, penso que a linguagem de sobrevivência desenvolvida pelo analisando serve à função de uma segunda pele (Bick, 1968) que fornece algum nível de proteção contra o abissal do contato direto com as emoções. Ogden ressalta que as falas do analista que apontam para uma decifração da experiência do analisando convocam a atividade mental passiva do entendimento, o que pode facilmente tornar a possibilidade de encontro um jogo monótono, que leva a ainda mais retração.
À guisa de inconclusão
A experiência de reconhecimento da singularidade como fator fundamental para o encontro vivo entre duas pessoas implica a capacidade de lidar com as diferenças e as semelhanças, com a aproximação e o distanciamento, cuidando para que os contornos psíquicos sejam preservados e não ameaçados por esse contato. Slavoj Žižek destaca a função do não conhecer como essencial para que a experiência intersubjetiva de reconhecimento se realize:
Se eu tivesse a pretensão de “realmente conhecer” a mente do meu interlocutor, a intersubjetividade propriamente dita desapareceria; ele perderia seu status subjetivo e se transformaria – para mim – em uma máquina transparente. Em outras palavras, não ser conhecível aos outros é uma característica crucial da subjetividade, do que queremos dizer quando atribuímos aos nossos interlocutores uma “mente”: você “realmente tem uma mente” apenas na medida em que esta é opaca para mim. (2006, p. 178)
Na experiência psicanalítica, o não ser conhecível se entrelaça com a emergência da necessidade de ser reconhecido, de viver experiências que ajudem uma pessoa a se deslocar de uma linguagem com componentes frios e metálicos de sobrevivência para uma linguagem possível de reconhecimento e encontro com o outro. Ogden intui que a maneira como falamos reproduz simultaneamente “o desejo de ser entendido [to be understood] e de ser desentendido [to be misunderstood]” (2018, p. 412) o que se reflete também na maneira como escutamos as outras pessoas. Há algo essencial por trás da linguagem de sobrevivência que precisa ser preservado a todo custo, ainda que o sentimento de isolamento necessário seja, em alguns momentos, o motor do sintoma que conduz uma pessoa à busca da análise.
A aventura de aprender a linguagem de sobrevivência de cada analisando coloca-nos diante do mistério de seus sons primordiais, das experiências infantis, de encontros e desencontros, do desassossego em que foram erigidas suas formas de expressão. Em certas ocasiões, podemos intuir alguma sensibilidade protegida sob as formulações esdrúxulas, os cacoetes verbais empregados por uma pessoa que se dirige ao analista em busca de algo que ela chama de análise, ou terapia, ou mesmo coaching, aconselhamento, conversa, bate-papo, consulta ou qualquer outra designação disponível em seu léxico pessoal. Em outras ocasiões, salta aos olhos (e aos ouvidos) o temor com que um pedido se esboça nas palavras escolhidas. Em qualquer que seja o caso, em quaisquer que sejam as formas e os alcances expressivos da linguagem possível do analisando, temos sempre o incomensurável desafio o de buscar estabelecer com ele uma linguagem capaz de forjar uma troca genuína entre dois seres humanos. Não raro escutamos de nossos analisandos a constatação de que a linguagem que usamos na sessão psicanalítica é de natureza diversa, não obstante as palavras e a língua utilizada serem velhas conhecidas. É nos interstícios da linguagem comum, nas microscópicas fendas que simultaneamente unem e separam as palavras e as organizações verbais, que se capta o elemento essencialmente vivo da experiência emocional, aquilo que jaz protegido por trás da ampla murada erigida para conter a violência das emoções e o ímpeto das paixões.
Se nos pusermos a escutar por entre as frases mecânicas, por através das construções brutas e por trás dos silêncios que brotam dos ruídos metálicos que movimentam as gruas da linguagem de sobrevivência, poderemos encontrar a matéria viva que mobiliza uma pessoa a buscar – da forma como pode – a ajuda possível da análise. A potência criadora das palavras perdidas revela-se nos vacilos da linguagem, na possibilidade de desentender as certezas, desvincular as narrativas e desencapsular os sentidos aprisionados.
Finalizando com uma providencial citação da historiadora Arlette Farge, ao discutir as relações do historiador com o jogo de aproximações, oposições, encontros acidentais e sentidos singulares despertados pelas falas que se extraem do trabalho vivo com os arquivos históricos, deixo aberta a palavra para buscar, em breve, novas realizações:
No murmúrio de milhares de palavras e frases, poderia ocorrer de se buscar apenas o extraordinário ou o resolutamente significativo. Isso, sem dúvida, seria um erro: o aparentemente insignificante, o detalhe sem importância traem o indizível e sugerem muitas formas de inteligência viva e de entendimentos refletidos que se misturam a sonhos frustrados e a desejos adormecidos. As palavras traçam figuras íntimas e expõem as mil e uma formas da comunicação de cada um com o mundo. (2009, p. 89)
El lenguaje perdido de las grúas
Resumen: En este ensayo discutimos la concepción de un lenguaje de supervivencia para designar un modo de comunicación singular y solitario que una persona produce para hacer frente a la agitación emocional experimentada en estado de impotencia. Partimos de una discusión sobre los límites del lenguaje como fenómeno paradójicamente impersonal e interpersonal que introduce en el campo analítico una dialéctica fundamental para engendrar con cada paciente un lenguaje de reconocimiento capaz de transmitir la intimidad de la experiencia. Proponemos un diálogo con las obras de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira y Thomas Ogden sobre las posibilidades de comunicación analítica dentro de los límites inherentes a la formulación en lenguaje verbal.
Palabras clave: lenguaje, comunicación, alteridad, reconocimiento, interpretación
The lost language of cranes
Abstract: In this essay we discuss the conception of a language of survival to des- ignate a singular and solitary mode of communication that a person produces to cope with emotional turmoil experienced in a state of helplessness. We begin by discussing the limits of language as a paradoxically impersonal and interpersonal phenomenon that calls for a fundamental dialectic in the analytic eld for the en- gendering of a language of recognition capable of conveying the intimacy of expe- rience with each analysand. We propose a dialogue with the works of Christopher Bollas, Pérsio Nogueira and Thomas Ogden on the possibilities of analytical com- munication within the limits inherent to formulation in verbal language.
Keywords: language, communication, alterity, recognition, interpretation
Résumé: Dans cet essai, nous discutons la conception d’un langage de survie pour désigner la manière de communication singulière et solitaire qu’une personne produit pour faire face aux troubles émotionnels vécus dans un état d’abandon. Nous commençons par une discussion sur les limites du langage, en tant que phénomène paradoxalement impersonnel et interpersonnel, lequel introduit dans le champ analytique une dialectique fondamentale, à n d’engendrer un langage de reconnaissance capable de transmettre l’intimité de l’expérience à chaque analysant. A cet e et, nous proposons un dialogue avec les travaux de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira et Thomas Ogden sur les possibilités de la communication analytique dans les limites inhérentes à la formulation en langage verbal.
Motsclés: langage, communication, singularité, reconnaissance, interprétation
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Recebido em 2/9/2019, aceito em 17/9/2019
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