Anne Lise Di Moisè S. Scappaticci,1; Marina F. R. Ribeiro, 2.
Resumo: Este artigo trata da evolução do conceito de objeto psicanalítico no decorrer da obra de Wilfred R. Bion, trazendo questionamentos clínicos e ilustrações com trechos de sua autobiografia e uma vinheta clínica.
Palavras-chave: metapsicologia, autobiografia, experiência emocional, psicanálise
1.Analista didata e professora da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Doutora em saúde mental pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (epm-Unifesp). Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Roma La Sapienza. Pós-doutoranda pelo programa de psicologia clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Editora da revista Ide.
2.Psicanalista. Professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp), orientadora no programa de psicologia clínica e coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic).
De que se ocupa o psicanalista? Qual é o objeto psicanalítico? É científico? Físico? Matemático? Estético? Poiético?
Hoje em dia (e no passado), várias correntes dentro da psicanálise focalizam o objeto psicanalítico percorrendo um espectro que vai desde a psicopatologia, o caso clínico e a transferência – em que prepondera única e exclusivamente uma abordagem do psiquismo do paciente – até a investigação da contratransferência, das identificações introjetivas e projetivas, do campo analítico, da relação e, finalmente, da inclusão da personalidade do próprio analista. As abordagens psicanalíticas parecem ter enfoques diferentes. Algumas privilegiam a neutralidade do analista, as manifestações inconscientes do paciente, o intrapsíquico do analisando, enquanto outras se voltam para as experiências emocionais do analista no setting como principal ferramenta de trabalho.
Objeto psicanalítico é um termo utilizado por Freud inicialmente no artigo “Os instintos e suas vicissitudes”, de 1915. Considerando a teoria pulsional, ele a forma que se constitui como objeto da pulsão todo objeto no qual ou através do qual a pulsão consegue atingir seu alvo. O objeto não é fixo nem previamente determinado; é o que há de mais contingente no conjunto de elementos e processos presentes nos atos pulsionais.3 Já em uma leitura mais sutil na obra de Freud, podemos conceber essa primeira experiência de satisfação como mítica, uma ficção, isto é, como uma situação que nunca existiu concretamente, mas que é postulada por ele como construção teórica necessária para alicerçar suas hipóteses. Daí a infinidade de objetos empíricos que se prestam a substituir esse lugar vazio, em uma busca vã e inesgotável, na saga pessoal de cada sujeito.
Melanie Klein associa os objetos internos à fantasia, tornando o objeto psicanalítico ainda mais inefável e inerente ao modo singular de internalização e de projeção das experiências emocionais. Bion expande essa ideia distanciando-o do biológico, assim, atribui ao objeto psicanalítico a própria vivência emocional. Em Elementos de psicanálise (1963/2004) afirma que esse objeto tem a dimensão dos sentidos, dos mitos e da paixão. Focaliza o psíquico, o desconhecido, o incognoscível no inapreensível, que é, consequentemente, difícil de ser compartilhado.
Bion parece alertar o psicanalista a observar seu próprio envolvimento mental na experiência da sessão, como diz o título escolhido para seu último trabalho, “Como tornar proveitoso um mau negócio” (1979).
Este artigo pretende acompanhar o movimento metapsicológico em parte da obra de Bion, visualizando as mudanças no enfoque do objeto psicanalítico.
Frequentemente esse autor se valeu do fato selecionado de Henri Poincaré para descrever o valor epistemológico da experiência de descoberta de uma configuração que une elementos há muito conhecidos, embora até então dispersos e aparentemente estranhos um ao outro, além de subitamente introduzir ordem onde reinava a aparência de desordem. Ele assim nos permite ver, de relance, cada um dos elementos no lugar que ocupa no todo. Não só o fato novo é valioso por si, mas ele, sozinho, confere valor aos fatos velhos que une. Nossa mente é frágil como nossos sentidos.
3. “O objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou por meio da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação”. (Freud, 1915, citado por Rezze, 1990)
Perder-se-ia na complexidade do mundo, se essa complexidade não fosse harmoniosa. Como míope, ela veria apenas os pormenores, e se condenaria a esquecer cada um deles antes de examinar o seguinte, por se mostrar incapaz de considerar o todo. São dignos de nossa atenção somente os fatos que introduzem ordem na complexidade, tornando-a, assim, acessível a nós. (Poincaré, citado por Bion, 1962, p. 90)
Em sua escrita, Bion não classificou os diferentes períodos de interesse em sua obra. Na introdução do livro O aprender com a experiência (1962), orienta o leitor quanto ao método de realizar a leitura de seus textos. Ele parece até preconizar que o objeto irá surgir durante a própria leitura, em que o leitor se torna autor, assim como na experiência analítica:
O livro foi projetado para ser lido diretamente, sem conferir partes que a princípio parecem obscuras. Algumas obscuridades se devem à impossibilidade de escrever sem pressupor familiaridade com certos aspectos de um problema que só será trabalhado depois. Se o leitor fizer uma leitura direta, essas questões se esclarecerão na medida em que ele prosseguir. Infelizmente, as obscuridades também existem devido à minha incapacidade de torná-las mais claras. O leitor pode considerar recompensador o esforço de esclarecê-las por si próprio, e não vê-las simplesmente como tarefa a que foi forçado por eu ter deixado de fazê-la. (Bion, 1962, p. ii)
Contudo, vários autores se debruçaram em organizar a posteriori o desenvolvimento do pensamento de Bion, entre eles Bléandonu (1993), Braga (2018), Chuster (2018), Chuster et al. (2011), Meltzer (1998) e Rezze (2018).
Segundo esses estudiosos, no primeiro período destaca-se o interesse pelo grupo, no livro Experiências com grupos (Bion, 1961). O objeto psicanalítico, nesse sentido, é o funcionamento grupal em dois níveis: o grupo de trabalho – um nível psicológico, em que há colaboração – e o grupo dos pressupostos básicos. Nesses últimos, “a potência não decorre da ciência, mas da magia. ... Os indivíduos não acreditam em sua aptidão para aprender com a experiência; ao contrário, tudo isso representa o ódio de toda a aprendizagem pela experiência” (Bion, 1961, p. 28).
Essa dimensão grupal continua como proposição germinal por toda a obra do autor. Bion não descarta compreensões que teve na origem; ele parece voltar a elas. Os pressupostos básicos, por exemplo, seriam nossos estados alucinatórios, dimensão sempre presente. Um fulcro do pensamento bioniano é a tensão perene entre o indivíduo e o stablishment, o místico/gênio e o grupo, os personagens do grupo interno da mente descritos no final de sua vida na trilogia Uma memória do futuro (1979/1990a, 1975/1990b, 1977/1990d). No livro Experiência com grupos, ao descrever um espaço imaginário no parágrafo intitulado “Tensões intragrupais”, ele comenta: Achei útil visualizar a organização projetada da ala de treinamento como se se tratasse de uma estrutura encerrada dentro de paredes transparentes. Nesse espaço, o paciente seria admitido em um determinado ponto, e as atividades em seu interior seriam organizadas de maneira que ele pudesse movimentar-se livremente em qualquer direção, de acordo com a resultante de seus impulsos conflitantes. Seus movimentos até onde possível não seriam deformados por interferência externa. Em resultado disso, poder-se-ia confiar que seu comportamento proporcionasse uma indicação direta de sua vontade e seus objetivos efetivos, em oposição aos objetivos por ele próprio proclamados ou àqueles que o próprio psiquiatra desejaria que ele tivesse. (Bion, 1961, pp. 14-15)
No segundo período destaca-se o interesse pelo pensamento psicótico (1950-1960). Em 1967, Bion reuniu sete trabalhos no livro Estudos psicanalíticos revisados. O objeto psicanalítico está dimensionado sob a influência do pensamento kleiniano em “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides” (1946/2006), cujas ferramentas principais são a identificação projetiva, as posições esquizoparanoide e depressiva e os objetos parciais. Nesses artigos, como em “Ataques à ligação” (1962/1967a), a mente é concebida de modo espectral; sua manifestação não é apenas uma relação verbal, mas algo na tensão entre uma mente e outra, uma função. Bion está interessado nos primórdios da capacidade de pensar, no que ocorre no contato do aparelho psíquico do bebê com o aparelho psíquico da mãe, na exposição da mente do analisando à mente do analista.
O progressivo enfoque nos processos de pensamento, no método do pensar, e não somente no conteúdo do pensamento, culmina no artigo “Uma teoria sobre o pensar” (1962/1967b), que prepara para a fase sucessiva, a epistemológica (1962-1979). Bion expande a teoria freudiana da consciência como órgão perceptivo das qualidades psíquicas, presente no artigo “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911/1996a), e a teoria kleiniana da identificação projetiva, que é a fantasia primitiva onipotente e inconsciente na qual se pode projetar dentro do objeto partes ou sentimentos indesejados de si mesmo. Como decorrência, o objeto psicanalítico é investigado por meio da participação do próprio sujeito – princípio da incerteza de Heisenberg (1927) – e pode ser visualizado através de vários vértices. Trata-se, portanto, de um objeto complexo e não linear.
O autor propõe a função alfa e seus fatores, os elementos alfa e beta – algo que não tem existência na realidade –, a relação entre continente e contido, e o pensamento sempre ligado à emoção por meio dos vínculos de conhecimento (K), ódio (H) e amor (L) e da oscilação ps1 d. Sua descoberta é um processo de investigação na experiência emocional em curso. Ilustro essa ideia com uma passagem de sua autobiografia, escrita no fim de sua vida.
Nela o pequeno Wilfred explora o funcionamento mental dos adultos, e assim particularmente seu próprio método de exploração:
Examinei essa questão por completo – e outras como “O xarope dourado é mesmo de ouro?” – com minha mãe, e depois com meu pai, mas sem me satisfazer com nenhum dos dois. Concluí que minha mãe de fato não sabia; embora se esforçasse muito, ela parecia tão intrigada quanto eu. Foi mais complicado com meu pai; ele começava, mas parecia se cansar quando eu não entendia a explicação. O clímax veio quando eu fiz minha pergunta sobre o xarope dourado pela “centésima vez”. Ele ficou muito bravo. “Uau!”, disse minha irmã com apreciação. ... Mais tarde, quando eu quis saber o significado de “persona non grata”, guardei a pergunta e outros problemas similares apenas para mim. Eu desenvolvi um sexto sentido sobre “a centésima vez” muito antes de aprender matemática suficiente para contar até cem. Já naquela época eu parecia ter estabelecido tamanha distância entre a matemática aplicada e a matemática pura que não me dava por satisfeito – nem naquela época, nem agora – com a conexão entre cem e a “centésima vez”. (Bion, 1982, p. 9)
O objeto psicanalítico é pensado por meio de uma fórmula que salienta a preconcepção (Ψ (ξ)) inata da personalidade em busca de uma realização, e assim uma atitude socrática do analista, que como a parteira estimula emergir algo que já existe dentro da própria pessoa. No capítulo 22 de O aprender com a experiência, Bion propõe uma fórmula para representar o que seria um objeto psicanalítico, um objeto complexo holográfico: {Ψ (ξ) ± Y M}. Chuster esmiúça as ideias contidas na fórmula: “A preconcepção Ψ (ξ) busca uma reali- zação (R) que dê luz a uma concepção no espectro de possibilidades que vai do -Y (narcisismo) ao +Y (socialismo) sob a égide constante da complexidade (M) inerente a um organismo biológico”. (2018, p. 48)
Em Elementos de psicanálise (1963/2004) Bion elabora a grade como instrumento para a observação psicanalítica, de mapeamento do pensamento – um eixo horizontal para aplicações e um vertical para o desenvolvimento genético. Estuda o objeto psicanalítico, inicialmente considerado nas dimensões dos sentidos, do mito e da paixão. Até esse momento a experiência emocional é O, a origem do encontro da sessão, o desconhecido. O pensar é do pensador, embora os pensamentos não sejam criados pelo pensador, mas pré-datem platonicamente sua recepção. Entram no interior da mente que desenvolveu um aparelho para pensar: “Este vem a ser o jardim metafórico da ‘Ode à Psique’” (Williams, 2018, p. 160). Assim, o desejo de contar o sonho se transformou na experiência do sonhador que pode ser vivida pela dupla na sessão. A teoria do pensamento e a ideia do aprender com a experiência, ligada ao pensar simbólico e ao aprender (ou não), são bastante assimiladas entre os psicanalistas. A teoria do pensar se inscreve como uma teoria do conhecimento cuja finalidade é epistemológica. Portanto, à medida que nos aproximamos do final de O aprender com a experiência, uma graduação entre a ideia de aprender e a de transformações fica mais clara e culmina no foco da proposta do último capítulo, o conhecimento (K) e o não conhecimento (-K). A grade 4 – e os pensamentos que consubstanciam na apresentação do trabalho – pode ser vista como estruturante em sua metapsicologia, já deixando entrever os próximos passos, Transformações (1965). Alguns autores consideram haver uma ruptura entre o aprender e a ideia de transformações; outros, não. De qualquer maneira, a realidade psíquica, aos poucos, aparece mais incluída na observação do analista; focaliza-se uma situação que ultrapassa o aprender com a experiência.
No capítulo 9 de Transformações, Bion salienta a diferença da natureza das transformações pelo conhecimento, passando pela experiência emocional e pelas transformações em O, pelo ser, entrando em contato direto com a realidade. Existiria uma continuidade ou uma mudança de vértice? A teoria do pensar poderia ser estendida para a dimensão do ser? Diz respeito ao analista decidir qual dimensão eleger para trabalhar? A concepção do mental é expandida, é multidimensional, comporta tanto uma dimensão como a outra. Em Transformações, o autor explora as transformações em alucinose, fronteira entre a capacidade de pensar e a psicose.5 Há um nível crescente da presença de algo imaterial, psíquico ou menos sensorial. Não basta passar pela experiência, já que é possível não aprender com ela. Assim, o eixo do objeto psicanalítico é a transformação em níveis psíquicos, únicos e inefáveis, infinitos, no sentido de expansão sem fim do repertório vivo. Para alguns, Bion estabelece a mudança de paradigma. O conceito de transformações carrega em si a ideia do novo, e não só do que é repetido.
Bion parece não descartar suas concepções originais de que Ψ era a função psicanalítica da personalidade, algo desconhecido que nos habita, e a função alfa um fator dela. O objeto psicanalítico privilegia aquilo que está evolvendo da origem, do desconhecido, buscando existência, uma preconcepção dessa origem desconhecida (Bion, 1962). Nos últimos três capítulos de Transformações (1965), Bion propõe um percurso além do âmbito do conhecimento, dos desenvolvimentos do simbólico e do aprender com a experiência – um plano fora do conhecer. Nesse novo período, denominado ontológico, o objeto psicanalítico está no gerúndio, do ir sendo ou de tornar-se a realidade, de posicionar-se em sintonia ou de evitar a realidade psíquica não sensorial. Algo de que não se pode aproximar pelo conhecimento, que jamais será alcançado. Assim, o autor cria um alerta aos analistas: não interpretar de modo precipitado o que pode não ser analisável pela representação.
Além disso, as transformações em O instauram a instigante questão de se podemos mudar sem conhecer, ainda presente em muitos autores (Marra, 2021). Enfim, caminhamos do analista tido como neutro para o reconhecimento de um analista inevitavelmente implicado na sua função psicanalítica (Ribeiro, 2017).
4. Essa comunicação é de 2 de outubro de 1963 e foi publicada posteriormente por Francesca Bion no livro Taming wild thoughts (1997). Em 1977, Bion publica o segundo artigo sobre a grade no livro Two papers: e grid and Caesura.
5. Não no sentido de uma divisão entre psicótico e não psicótico, mas do que pode ser conhecido, simbólico, ou não conhecido, não simbólico.
Para Bion, o cerne da questão é a decisão do analista a respeito de qual dimensão da mente abordar, se estará disponível a estados não acessíveis pelo caminho simbólico ou do pensamento e disponível a um estado de comunhão, algo que atinge o outro de forma direta.
“Por que você está triste mamãe?”, perguntei-lhe mais tarde; ela riu, dispensando a sugestão. “Sim”, eu insisti, “você sabe – as surpresas de luz”, eu lembrei a ela. “Algum dia você vai entender – quando você for adulto”, disse ela. “Mas”, eu insisti, “você é adulta e disse que não entendeu.” Ela corou um pouco e riu. Aquela risada desconfortável! (Bion, 1982, p. 24)
Em “Notas sobre memória e desejo” (Bion, 1967/1990c) focaliza-se o objeto psicanalítico por meio daquilo que é desconhecido, do qual nada deve distrair o analista. Essa postura facilita o contato com a realidade psíquica, que é inefável, inapreensível; podemos apenas descrevê-la de modo absolutamente pessoal. O vértice do objeto psicanalítico vai se tornando o viver a experiência na clínica. De fato, suas supervisões demonstram que, do ponto de vista clínico, Bion continua a valer-se tanto da teoria do conhecimento (1962-1965) quanto da proposta de contato direto com a realidade. (transformações em O, a partir de 1965)
Segundo Bion (1970), o analista deveria, durante as sessões, tentar estar nesse ponto em que o indiferenciado toma forma finita, ou seja, um ponto no infinito em que é possível “ver” os pensamentos à medida que surgem. Bion passou a considerar que cada pensamento seria “conquistado do infinito escuro e sem forma”. Nesse sentido T(O) seria caracterizado como algo novo acontecendo, algo diferente de T(K), que é o processar e pensar as experiências emocionais existentes na área do princípio prazer-dor. ( Vermote, 2011)
Nos últimos anos de sua vida, após 1976, em artigos, seminários e supervisões, assim como em Uma memória do futuro, Bion focaliza as manifestações de estados primordiais da mente. São vestígios arcaicos e pré-natais, não passíveis de ser registrados pelo córtex cerebral, mas que deixam marcas em órgãos como o tálamo, as adrenais e as gônadas. Eles estarão presentes no resto da vida do ser humano, na manifestação de terrores de ser só e dependente, de uma consciência moral primitiva (Braga & Matos, 2009), assim como nos impulsos que urgem por existir.
Gostaria de concluir este artigo com um caso clínico em que o registro da sessão é a busca do vértice com base na descrição da experiência do analista em termos psíquicos. As transformações ocorridas também parecem variar entre transformações em conhecimento (K) e em ser (O).
A partir do pressuposto da importância da observação do analista, penso que a comunicação se estabelece dependendo do vértice pelo qual se faz essa observação, isto é, do que é sensível à lente do analista, à sua personalidade, ou seja, a “publica-ação” se relaciona e está determinada pelo pano de fundo da observação. Alguns analistas se atêm a dados de anamnese, diagnósticos, a lógica de causa-efeito, enquanto outros estão mais disponíveis para descrever a experiência psíquica que podem apreender, mesmo que de forma inexoravelmente subjetiva. Nesse caso ouvem os sons dos silêncios, sentem a ansiedade, visualizam fantasmas e precisam “pagar o preço” da decisão de sua “autopublicação”, ou seja, de uma escrita na qual o analista está inevitável e inteiramente comprometido. Seria essa escrita a de um xamã? Será que o analista escreve o que absorve com sua sensibilidade talâmica ou subtalâmica? Será que está em alucinose?
Eva ou Evita
Aguardo um bom tempo. Evita chega correndo. Quando entra, não me olha e casualmente diz: “Teve a festa. Foram todos, menos você e o papai”. Continua num clima muito dramático, descrevendo a situação. Do seu modo firme e claro, automático, sinto aumentar a distância entre nós. O clima é árido. Um discurso muito articulado e vazio. Quase uma encenação?! Sem emoção.
Procuro por mim, procuro não “des-existir”, partir dali. Encontro-me sem energia para repetir a argumentação de que não poderia ir ao seu aniversário para preservar nossa relação. Aquele pensamento soa como uma ladainha. Uma reza?!
Seria fácil, penso, resolver essa minha angústia simplesmente dizendo que ela está se vingando de mim (de nós, de nosso tempo juntas), já que não pode dizer ao pai aquilo que sente ou pensa dele. Mas será que é o que sente? Sentimento? Pensamento? Decido permanecer em silêncio.
Evita continua seus lamentos espalhando todos os brinquedos de sua caixa pelo chão. Não tem parada nem sossego. Não para de falar e não para de atirar coisas para lá e para cá, como quem rapidamente não vê interesse algum por nada.
Os brinquedos, espalhados, perdem sua finalidade, sua discriminação. Destroços. Parece que estamos numa espécie de lixão. Permaneço num espaço muito restrito da sala, atrás do pequeno divã.
Diz que não pode gostar de C (o companheiro da mãe) para não desagradar o pai. Seu discurso é adulto, sem emoção. Sinto que participo de um teatro, como se ela fosse um papagaio repetindo frases que ouviu de outras pessoas. Uma matraca? Não eram as matracas que faziam barulho para imitar as metralhadoras? Estaria minha paciente impondo medo para não sentir sua fragilidade? Será que tenta me paralisar, ilhada como estou neste cantinho? Mergulhada em meio a tantas frases repetidas, penso que já não sei mais do que se trata.
Comento: “Que pena! Tua cabeça está tão ocupada com tanto barulho que não consegue nem brincar, ou pensar, estar aqui comigo”.
Ela para e olha para mim. Continuo ilhada no cantinho. Como consigo sua atenção, insisto: “Olha só a nossa sala. Ficamos sem nada: sem brinquedo, sem brincadeira, sem encontro e sem conversa...”.
Nesse momento parece que surge algo nela. Uma espécie de ternura. Recolhe todos os brinquedos parecendo muito preocupada e cuidadosa. “Preciso colocar tudinho no lugar!” Logo depois pede um copinho e começa a picá-lo em pedacinhos. Conta que seu pai disse que não virá mais buscá-la, mas que ela acha que ele estava brincando. “Ouço” o tom sofrido da fala. Num relance, olho para o chão da sala e sou tomada por uma forte emoção. Não sei explicar, é um mistério para mim. Os pedacinhos de plástico espalhados pelo chão da sala, que os reflete como numa superfície espelhada. É muito belo. Parece-me uma “instalação”.
Decido comentar minha impressão: “Puxa, você espalhou seu choro por toda a minha sala!”.
Eva diz: “É, tenho medo de machucar meus pés!”. Sugiro: “É como caminhar em caquinhos de vidro?”.
Sinto seu olhar profundo apoiado em mim. Saímos ambas impactadas...
Algumas reflexões a respeito das teorias e do caso clínico
O objeto psicanalítico parece ser um conceito abstrato que depende da teoria adotada, da formação e, sobretudo, da personalidade de cada analista. A experiência reportada com a pequena analisanda está no limite do descrito, fruto da vivência emocional que tento comunicar.
Evelise Marra (2021) propõe “pensar o objeto psicanalítico, ou mais estritamente o que fazemos, como o que se passa quando na oportunidade de construção de uma relação pessoal-emocional, onde a sinceridade, franqueza, intimidade, alicerçadas na fé de que algo surgirá do encontro, evolva”.
Cecil Rezze destaca: O essencial é um estado mental do paciente com o qual o analista pode se conectar e, reciprocamente, uma produção mental do analista que o paciente pode usar para suas necessidades de crescimento mental – amor, ódio, refutação, agressão, enfim, qualquer uso que lhe seja pertinente. (1990)
Percebo que na sessão utilizo minha intuição e que privilegio as transformações em O. Entretanto, podemos pensar nas transformações em O sem o corolário das transformações em K, ou da intermediação do uso dos sentidos? Ou ambas as transformações, em O e em K, embora de natureza diferente, estariam sempre entrelaçadas e presentes em nossas apreensões (Scappaticci, 2017)? Parece que trabalhamos na cesura, no trânsito K1 O. Ainda acerca da natureza do objeto psicanalítico, este seria um dado a priori, e assim a dupla analítica se debruçaria em sua investigação, ou algo criado (Frochtengarten, 2021)?6 Podemos supor um trabalho “poiético” da dupla, a recriação desse objeto sempre subjacente e aguardando realização?
Notas sobre el objeto psicoanalítico en la obra de Wilfred Bion
Resumen: Este artículo trata sobre la evolución del concepto de objeto psicoanalítico en el trabajo de Wilfred R. Bion, trayendo preguntas clínicas e ilustraciones con extractos de su autobiografía y una viñeta clínica. Palabras clave: metapsicología, autobiografía, experiencia emocional, psicoanálisis Notes on the psychoanalytic object in the work of Wilfred Bion Abstract: is article deals with the evolution of the concept of psychoanalytic object during the work of Wilfred R. Bion, bringing clinical questions and illustrations with excerpts from his autobiography and a clinical vignette. Keywords: metapsychology, autobiography, emotional experience, psychoanalysis
Notes sur l’objet psychanalytique dans l’œuvre de Wilfred Bion
Résumé : Cet article traite de l’évolution du concept d’objet psychanalytique au cours des travaux de Wilfred R. Bion, apportant des questions cliniques et des il- lustrations avec des extraits de son autobiographie et une vignette clinique. Mots-clés : métapsychologie, autobiographie, expérience émotionnelle, psychanalyse
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