Marina F. R. Ribeiro35 Elisa Maria Ulhoa Cintra36 Carla Penna37
35 Psicanalista, professora doutora do IPUSP, coordenadora do LipSlc (Laboratório interinstitucional de Estudos da intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea IPUSP-PUCSP).
36 Psicanalista, professora doutorada PUC-SP, coordenadora do LipSic (Laboratório interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanalise Contemporânea IPUSP-PUCSP).
37 Psicanalista, doutora em psicologia clínica pela PUC-RJ, psicanalista do Circulo Psicanalítico do RJ, membro da Group Analytic Society International.
"Sonhar é acordar-se para dentro." Mario Quintana
A noite passada eu sonhei...
Ao ouvir estas palavras, rapidamente a atenção do interlocutor se aguça; se é um analista, ainda mais. O que será que acontece?
Freud elaborou as premissas da escuta psicanalítica que tomaram forma através do setting analítico: o analisando é convidado a fazer associações livres e o analista a entrar em estado de atenção livremente flutuante. Depois de Freud, um número incontável de psicanalistas deu inicio a diferentes praticas clinicas que ampliaram e diversificaram esse modelo original e fundante da psicanálise.
A escuta de pacientes psicóticos e traumatizados obrigou a diversas adaptações do modelo originário, especialmente na pratica da psicanálise extramuros fora do setting clássico. A descoberta da análise infantil por parte de Melanie Klein (Cintra e Ribeiro, 2018) e de Anna Freud, e as incursões na psicose por parte de Bion, Winnicott e Lacan, além de todas as experiências de trabalhos com grupos, levaram a transformações na prática psicanalítica e ampliações do método psicanalítico.
Em todas estas demarches um elemento permanece constante: o insight fundamental de que o funcionamento psíquico se baseia uma associatividade entre ideias, afetos e memórias, e na construção de relações de vínculo afetivo entre as pessoas, gerando novos efeitos intersubjetivos e transferenciais, ampliando sempre as redes associativas. Podemos ainda afirmar, en passant, que até mesmo o funcionamento cerebral pressupõe uma rede neuronal que funciona através de circuitos associativos.
Os novos problemas clínicos e a necessidade de levar a escuta psicanalítica para territórios diversos daquele que a originou exigiram renovação e expansão, favorecendo, dessa forma, expansões do método, da teoria e da pratica psicanalítica. Surgiram a clinica psicanalítica ampliada e a exigência de pensar os fundamentos de novas praticas, o que vamos encontrar em muitos autores na psicanálise contemporânea, especialmente no livro Manual da pratica clinica em psicologia e psicopatologia de R. Roussillon (2019).
Durante a pandemia, a clinica psicanalítica tem enfrentado desafios que, se por um lado demandaram mudanças no setting analítico, por outro deram espaço para importantes inovações.
Na psicanálise clássica, o sonho é considera como via regia de acesso ao inconsciente. Seu relato, as associações livres e sua interpretação no seio da relação analítica permitiram o acesso a conteúdos recalcados, levando a insights e a elaboração das experiências traumáticas. Contudo, apesar de as considerações freudianas sobre o sonho terem sido transformadoras para a psicanálise, a importância do sonho permaneceu incialmente restrita a ideia do sonho como acesso ao inconsciente, através do universo intrapsíquico do paciente em analise.
Ferenczi (1933) foi o primeiro psicanalista a compreender os sonhos dentro de um contexto relacional localizando sua gênese no espaço intersubjetivo (Neri, Pines & Friedman 2002). Para Ferenczi, o relato de um sonho é sempre uma tentativa de comunicação: "uma pessoa pode sentir-se impelida a relatar um sonho para a pessoa a qual o sonho encontra-se relacionado” (Ferenczi, 1913/1992, p. 112). Anos mais tarde no Diário Clinico (1933/1990), Ferenczi acrescentou que "o paciente percebe que o fragmento de seu sonho e uma combinação de conteúdos inconscientes da psique do analisando e do analista". (1933/1990, p. 35)
Atualmente, as investigações sobre a função dos sonhos na psicanálise envolvem uma miríade de autores, tais como Bion (1962), Meltzer (1984), Ogden (2001), Ferro (2001) e Grotstein (2010), que permitiram não apenas a ampliação do conhecimento sobre questões traumáticas e diferentes estados de consciência, mas que também, em maior ou menor grau, apontaram para a interface do sonhar com a experiência intersubjetiva.
Desde 1937, Ella Sharpe já apontava para o fato de que o trabalho do sonho e o sonho revelavam o "não conhecido implícito no conhecido", e que esse processo permitia ampliação da experiência da linguagem e do pensamento. De uma forma particular, tanto o sonhador quanto o poeta ou o artista seriam capazes de transcender o cotidiano e, associando livremente, ampliar de forma infinita as palavras e os sentimentos. (Sharpe, 1937/1961)
Para Resnik (1987), o contar o sonho na sessão analítica é sempre um evento transferencial. A análise do sonho e desenvolvida através da compreensão de sua gramática e de seu teatro de significações. O sonhar é uma forma especial e complexa de pensar, e um tipo de experiência no espaço e no tempo que, governada pelo processo primário, recria experiências primitivas. A partir da teatralidade psíquica característica dos processos inconscientes, permite confrontar expressões oníricas infantis as experiências cotidianas da vida adulta.
Contudo, o relato do sonho não é apenas um trabalho de construção e elaboração conjunta da dupla analítica, ele pode nascer também das experiências com grupos e com a sociedade. Nesse sentido, a abordagem intersubjetiva do fenômeno do sonho permitiu que sua apreciação se deslocasse da perspectiva meramente individual/intrapsíquica para a dimensão Interpsíquica/intersubjetiva, permitindo valorizar a ideia do grupo como um sonho, sua polifonia e a existência de espaços oníricos comuns e compartilhados. (Kaes, 2004).
Na Inglaterra, em 1982, Gordon Lawrence criou no Tavistock Institute of Human Relations a técnica do Social Dreaming Matrix. Inspirado no livro de Charlote Beradt e apoiando-se em teóricos das relações objetais, especialmente em Bion e Bollas, Lawrence (2010) desenvolveu uma metodologia que, ao se afastar dos aspectos individuais do sonho e do sonhador contidos em seu relato, facilitou a exploração do sentido social dos sonhos, enfatizando sua dimensão social e coletiva. (Penna, 2013).
Investigações sobre sonhos e relatos de sonhos fora da sessão analítica tem ainda permitido a utilização do sonho como uma via regia em que a relação com "o outro" toma-se fundamental para a elaboração de sonhos em contextos traumáticos.
Em uma pesquisa realizada na Universidade Haifa em Israel, com 200 participantes, Friedman (2002, 2004) investigou aspectos interpessoais com envolvidos no relato de sonhos/pesadelos, especialmente na relação entre pais e filhos. Verificou-se que o relato dos sonhos não consistia apenas num esforço de eIaboração inconsciente de conteúdos ameaçadores ou excitantes que invadiam a subjetividade das crianças pesquisadas. O material onírico não pertencia somente a criança, mas também apontada para a relação com os pais, remetendo ainda a excessos da ordem do traumático provenientes tanto de questões transgeracionais quando do contexto sociocultural. Para Friedman (2004), a experiência de contar o sonho – Dreamtelling - permite, portanto, através da intersubjetividade, a criação de uma "royal road through the other/ uma estrada real através do outro". (Penna, 2013, p. 21).
Assim, o relato de um sonho, tanto na sala de análise, quanta na dimensão interpessoal ou mesmo em uma plataforma on-line, promove a criação de um espaço potencial, entre o eu e o outro, fundamental para a elaboração de processos inconscientes e afetos ainda não digeridos e/ou representados. Contar um sonho é, portanto, uma "busca por continente", e sua narrativa revela um desejo do sonhador de que alguém sonhe com ele seu próprio sonho, isto e, "re-sonhe" com ele o sonho.
Em termos bionianos, o contar o sonho facilita a expansão da função alfa do sonhador, ampliando suas possibilidades de autocontenção. Considerando os aspectos intrapsíquicos e intersubjetivos envolvidos, a narração do sonho promove o desenvolvimento do pensamento (Meltzer, 1984), a interiorização da função alfa (Bion, 1963), permitindo o pensar, o devanear, ampliando, ainda, a capacidade de conter afetos e emoções.
Bion (1962) formulou, a partir do texto freudiano "Os dois princípiosdo funcionamento mental" (1911), que somos sonhadores em dia, que, além do sonho da noite, temos o pensamento onírico da vigília, que é captado pela capacidade de rêverie do analista, a capacidade imaginativa do analista. Bion (1992) usa a metáfora das estrelas: durante o dia não vemos as estrelas, mas elas estão lá, ou seja, o pensamento onírico de vigília é invisível á consciência, captando as mais tênues emoções, que serão processadas no sonho á noite. O pensamento onírico de vigília é, portanto, uma função diurna da mente para processar e metabolizar as experiências emocionais. (Ribeiro,2019)
Muito tempo antes da chegada de um analista na vida de alguém, temos a mãe e o bebê. Bion (1962) descreve a capacidade de rêverie como uma amorosidade da mãe para com o filho. Além de uma boca que encontra o seio, o psiquismo incipiente do bebe busca a mente da mãe. Bion propõe a existência de um movimento em direção a algo que seria uma "preconcepção" de um objeto/seio. O encontro com o seio se realiza, dando origem ao mundo psíquico, colorido pelas emoções. A mãe, narcisicamente apaixonada por sua criação, se oferece como possibilidade da experiência de satisfação e dai decorre o sentimento de plenitude que Freud descreveu em "Sua majestade, o bebe" (Freud, 1914). Desse primeiro investimento narcísico e libidinal tem inicio a constituição, atravessada por emoções, sempre intensas e paradoxais. Quando o bebe encontra a mãe, capaz de sonhar, com capacidade para a rêverie, essa função transformadora e imaginativa atribui qualidade psíquica as sensações e percepções. Surge uma capacidade nascente de sonhar a nossa
própria vida.
Antonino Ferro (2011) faz outra interessante analogia: durante o dia temos um cameraman (o pensamento onírico da vigília), que vai captando varias cenas vividas; a noite temos o diretor, que vai compondo essas imagens dentro de um enredo fantástico, com todos aqueles mecanismos descritos por Freud: deslocamentos, condensações, simbolização, dramatização, elaboração secundaria.
Vários analistas estudiosos da obra de Bion recomendam que o analista sonhe a sessão, que ele possa ouvir o relato do seu paciente como um sonho. Isso soa enigmático? Pode ser, mas é, na verdade, um convite para entrar em contato com o mais intimo e verdadeiro em nós mesmos: o pensamento onírico, a inquietante realidade que nos habita, as emoções que se expressam intensamente através de imagens.
Em termos bionianos, o analista sonha a sessão por meio de sua função onírica alfa: uma função transformadora dos elementos beta, que compõem as sensações, os sentimentos e as imagens em fragmentos que surgem da experiência em estado bruto. Esse sonhar analítico da sessão se elucida se recordamos o expressivo termo ensoãcion, da língua espanhola. O analista entra em um estado de ensonhamento, uma atividade que transforma em sonho a experiência vivida. Bion sugere algo que revela o sentido inverso da proposta freudiana, sem abrir mão do que Freud postula (tomar consciente o inconsciente); propõe que precisamos tomar inconsciente o vivido. A rêverie e a função onírica alfa são constitutivas da capacidade de ensonhamento da experiência vivida em estado bruto. (Ribeiro, 2019)
Ogden (2019), em sua apresentação da teoria do pensar de Bion, destaca que são necessárias duas mentes para pensar pensamentos perturbadores. O pensamento perturbador é aquele que ainda não foi pensado não encontrou um continente, uma outra mente que o contenha e possa torna-lo pensável. No entanto, podemos refletir que qualquer pensamento novo é perturbador, inquietante e enigmático, Justamente por ser novo. (Ribeiro, 2019)
O pensamento perturbador passa ser contido na mente a partir de sua função onírica alfa. As impressões sensoriais brutas não podem se ligar entre si, não podem ser utilizadas para pensar, sonhar ou serem armazenadas na memória. Elas precisam se inscrever psiquicamente. A função alfa realiza essa inscrição psíquica, transformando os elementos beta em elementos alfa, que podem se ligar entre si e dão origem ao pensar. No inicio, Bion falava em rêverie, e, com o tempo, preferiu a noção de função alfa, que poderia reunir diversas funções mentais que, juntas, transformam impressões sensoriais brutas em elementos alfa. A rêverie é um fator função alfa, como escreve Bion (1962). Os ele- mentos beta que são contidos manifestam-se primariamente através de imagens e, posteriormente, chegam a ser narrativas. Para Bion, pensar em sua origem é sonhar; o sonho é o pensamento inconsciente. (Ribeiro, 2019)
Estamos sempre buscando o sentido da experiência vivida; essa busca de sentido é o que nutre a mente. A experiência em estado bruto produz impacto, susto, assombro e perplexidade. Sobre isso opera a função onírica alfa (Bion, 1962, 1992), que coloca o vivido em uma imagem, pois pensamos inicialmente por imagens. Ha uma exigência de nos tomarmos "alfa-beta-zadores" das emoções vividas em estado bruto. Criamos, então, imagens, narrativas. As palavras expressam sempre parcialmente o vivido, as emoções "em bruto", por isso precisamos contar e recontar nossos sonhos e precisamos ser ouvidos. As palavras são sempre aproximações que contem rastros do vivido; a experiência como um todo sempre nos escapa; é incognoscível.
Ressonhando os sonhos na pandemia
Neste memento da pandemia, percebemos no mundo inteiro o movimento de contar sonhos uns aos outros como se estivesse nascendo um grande desejo - ate mesmo uma exigência - de expressar e comunicar algo do sofrimento de cada um, colocando-o ao lado do sofrimento e dos desejos e esperanças da humanidade inteira.
Para esta reflexão, escolhemos alguns sonhos que nos parecem exigir novas associações e outra rêveries.
Sonho 1. Sem calcinha, sem máscara.
Sonhei que ia a uma festa com alguns amigos que não vejo há muito tempo, e no meio do caminho percebi que estava sem calcinha e precisei ir ao shopping. Lá me deparei com 100% das pessoas sem usar máscara e fiquei irritada e com medo de me contaminar, Eu também tinha esquecido a minha, mas estava usando um casado para cobrir minha boca/nariz. Grande parte das lojas estava fechada e não consegui encontrar uma calcinha para comprar (sendo que seja algum comum para comprar). Lembro também que, quando estava na presença de meus amigos, estava muito feliz e animada.
A vida nua e crua no desamparo pandêmico
Neste sonho, aparece um sinal da angustia humana mais fundamental, que Freud denominou de desamparo (hilflosigkeit); angustia que emergiu com tanta nitidez na pandemia, com suas ameaças de contagio mortífero, adoecimento, perdas em vários níveis e mortes. O adoecimento pela Covid ataca o aparelho respiratório e pode nos privar desse elemento fundamental: o ar, o sopro vital, que inalamos pela primeira vez ao nascer e que nos deixa para sempre ao morrer. Associamos um corpo vivo, animado, a esse sopro que anima, a alma do corpo. A pandemia nos deixou ameaçados de perder o sopro vital.
No sonho, estar sem mascara pode ser uma forma de falar da perda fundamental do sopro de vida, ao nos deixar expostos ao vírus, em dois sentidos: tanto de sermos contagiados e então privados do sopro vital, quanto de contagiarmos os outros, tirando a sua vida.
Nos sonhos de sair a rua sem roupa aparece tão bem o nosso desamparo: desnudos, diferentes dos outros, sozinhos. Freud incluía esses sonhos entre os sonhos típicos da humanidade, universais. Aqui aparece uma dupla nudez: sem calcinha e sem mascara.
Durante a pandemia a mascara se tornou uma barreira fundamental, sair de casa sem ela equivale a sair sem roupas, sem as proteções mínimas para a vida social. De forma semelhante e ao mesmo tempo diferente, estar sem calcinha evoca imediatamente um estado de maior exposição ao encontro sexual - encontra eco na imediata associação ao "estar sem mascara" um sentido aumentado de desproteção, de vulnerabilidade, deestar entregue as invasões. A vida nua e crua, sem e defesas, sem mascaras: de um lado, à mercê a invasão estrangeira pelo vírus; do outro estar com os genitais desprotegidos.
A nossa sonhadora - uma figura agora coletiva, que poderia representar qualquer um de nos - vai ao shopping e lá se encontra com as pessoas sem mascara, como nos tempos pré-pandêmicos! O desejo de andar nos lugares públicos vendo as pessoas sem mascara se expressa nessa cena onírica: o mundo que perdemos e não sabemos se vamos recuperar, a liberdade de sair por ai sem mascaras. Essa liberdade censurada se liga a perda da liberdade dos encontros sexuais, em que a entrega ao outro não representa um perigo mortal. A referencia um pouco cômica e irônica ao genital sem proteção sugere já não estarmos mais sob o domínio do medo e do desamparo; evoca uma entrega sem mascaras e sem calcinha aos perigos do amor e do sexo.
Nossas associações são apenas um convite as associações do leitor.
Sonho 2. Os psicólogos na pandemia
Sonhei que os psicólogos do Brasil haviam sido convocados pelo Ministério da Saúde para trabalhar em atenção básica em áreas de contaminação de Covid-19 durante a pandemia. Sonhei que havia sido convocada para trabalhar na favela da Rocinha do Rio de Janeiro. Lá andava destemidamente e sem máscara em meio a um grande número de moradores do local.
Sonhos de estar sem mascara durante a pandemia vem sendo relatados por pessoas em todo o mundo. Sua frequência, como apontamos anteriormente, evoca as considerações de Freud na Interpretação dos Sonhos (1900) sobre sonhos típicos, especificamente sobre o sonho de nudez, como se sonhos com o uso de mascaras fossem os sonhos típicos da pandemia.
No primeiro sonho, o medo da contaminação mútua se fez presente na relação ambivalente com a ausência da máscara e da calcinha. Já no segundo, o medo em relação à exposição e à contaminação pelo vírus desencadeado pela experiência real da convocação dos psicólogos pelo Ministério da Saúde brasileiro, transformou-se em uma reação defensiva, marcada por uma experiência de onipotência, de triunfo maníaco diante do medo da contaminação e da morte. A sonhadora trabalhava alegremente, sem máscara, junto à população da maior favela da América Latina.
De fato, como Freud (1915) pontuou, em nosso inconsciente não há lugar para a morte, ela e sempre a "morte de outrem" (p. 327). Contudo, como Ogden (1997) recorda, e impossível manter a sanidade e ao mesmo tempo experimentar a própria mortalidade sem recorrer a um certo grau de negação da morte, e a onipotência encontra-se sempre presente. Nesse sentido, a pandemia trouxe uma enorme ruptura na confiança e na onipotência exagerada que depositávamos na continuidade da vida em sociedade. Quando a onipotência se despedaça, a impotência e uma perigosa vulnerabilidade se instalam, exigindo a restauração da lei do inconsciente. Foi isso que aconteceu conosco, uma dose coletiva de onipotência foi destruída (Hinshelwood, 2020). Assim, diante do desamparo e da vulnerabilidade, defesas maníacas, como o triunfo onipotente diante do medo da morte presente no segundo sonho, procuram evitar a dor psíquica e o contato com ansiedades depressivas. (Klein, 1935)
Nesse sentido, na pandemia de Covid-19 defesas maníacas, como a onipotência e o triunfo sobre o "outro" que contamina, tem sido utilizadas para se contrapor ao fundo depressivo coletivo que predomina na sociedade atual (Figueiredo, 2017) e que durante a pandemia recrudesceu. Experimentamos hoje, em nosso cotidiano traumático, um apelo a fugir em direção a realidade externa, através de fantasias e ações onipotentes, para escapar da realidade interna e negar a morte que hoje parece sempre avizinhar-se. (Winnicott, 1935)
Antonino Ferro (2017) descreveu de uma forma simples e bela a experiência analítica: quando duas pessoas se juntam para elaborar a brutalidade da vida.
Quando a brutalidade da vida se intensifica, precisamos ainda mais desse outro para elaborar a dureza da experiência, buscamos apoio nos grupos, ainda que aconteçam de forma virtual. Sentimos a necessidade de sonhar juntos para tentar metabolizar tanto susto, tanta perplexidade, tanto assombro. Sonhar o redemoinho da pandemia, seu excesso, e suas descobertas também.
A experiência nos atendimentos on-line favoreceu algo que estávamos antes um pouco tímidos para reconhecer: que a realidade psíquica e virtual, de uma natureza intangível e insondável. A pandemia nos ensinou que a voz e a imagem dos analistas continuaram a oferecer hospitalidade ao outro, e receber dele também a sua presença viva, ainda que on-line. Grupos de pessoas aconteceram on-line, e em muitos momentos desapareceram as fronteiras de separação e de isolamento. No entanto, estamos ainda um pouco atordoados com a novidade, ainda buscando palavras par uma experiência desorganizadora e diferente do já conhecido e instituído.
O redemoinho que aparece neste sonho parece nos arrastar e tragar por uma imensa força centrípeta e sem limites, como se um grande volume de terra desabasse arrastando a tudo e a todos, através do contagio crescente e irreversível. Alguém tenta salvar o outro e se afoga, mas no final todos se salvam, surge a esperança tingida de onipotência, o desejo de que tudo se resolvera. Onipotência e desamparo são as duas faces humanas da mesma moeda; onde um aparece, a outra é sempre evocada para compensar.
Precisamos construir cenas, narrativas, que contenham, mesmo que parcialmente, o transbordamento da experiência. Isso e uma imperiosa exigência do momento: encontrar a outra realidade psíquica, agarrar-se a esperança de que juntos não vamos nos afogar.
A estratégia de sonhar coletivamente
Uma imagem onírica capta não somente o sofrimento pessoal, mas também o trauma coletivo. Bion dizia que um sonho pode ser compreendido em duas dimensões: o eixo do narcisismo e o eixo do social-ismo: “Poderíamos empregar esses termos para descrever duas tendências, uma egocêntrica e a outra sociocêntrica (...). As duas devem andar juntas: se uma estiver operando, a outra também estará". (Bion, 1992/2000,p.133). Ou seja, alguns sonhos captam o sofrimento psíquico de uma coletividade, o sonho do redemoinho tem essa característica. E, ao serem relatados em um grupo, fornecem sustentação e expansão ao sonhar de todos, favorecem a metabolização da experiência avassaladora da pandemia.
O que nos afoga e o excesso e a falta. O excesso da brutalidade da experiência, a falta de sentido, a ausência de imagens, a ausência de narrativas, que tragam alguma inteligibilidade e a falta de um continente que contenha o absurdo da doença e da morte. Não ha continente psíquico para tanto, precisamos nos juntar, o sonhar e narrar de um estende aos outros alguma estratégia de salva-vidas. Os analistas foram convocados a oferecer e precisaram também receber alguma forma de continência psíquica, através de formas singulares e coletivas de rêverie. A dor partilhada e sonhada nunca mais e a mesma. Encontra guarida em imagens, palavras e no olhar do outro; bem abrigada, essa dor pode, então, ser verdadeiramente sofrida. É Bion (1970) que nos fala a respeito da necessidade de sofrer a dor, de adentrar nela, sem fugir; a dor não sofrida e não sonhada transforma-se em ódio, vazio e arbitrariedade.
Depois de contida por um outro, ou muitos outros, a dor toma-se pensável e elaborável: toma-se psíquica por ter "morado" em outras realidades psíquicas. Será que podemos nos perder ao salvar o outro? O sonho evoca o perigo de oferecer um continente psíquico para a loucura do semelhante e ser com ele arrastado pela força irracional da loucura.
A partir das suas experiências na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, Bion (1992) afirmou que o analista e um comandante no campo de batalha: pode matar ou morrer, mas a sua responsabilidade e manter com serenidade a sua capacidade de pensar - isto e, "sua capacidade de pensar sob fogo/think underfire" (Bion, 1961) - , lembrando que, para Bion, pensar é sonhar. Perder a cabeça é um risco real: é preciso coragem para frequentar a morte psíquica da falta de sentido, de não conseguir mais sonhar, de sentir o vazio e a falta de vida psíquica do outro, e a falta de consistência de nos mesmos. Bion (1992) afirma que precisamos ser apresentados a nos mesmos, a pessoa com quem iremos conviver ao longo da vida.
O redemoinho que aparece no sonho seria essa perda de qualquer sentido, o absurdo da morte, do desamparo humano, da doença, que nos contamina psiquicamente, em uma ciranda macabra: excesso e falta. Estaríamos todos sujeitos a esse redemoinho mortífero, e isso e inédito; o mundo inteiro sob o mesmo vendaval, que vai nos sugando. A única resistência possível é estabelecer vínculos e laços: estender as redes do sonhar e do narrar o mais longe possível, soltar do porto a embarcação ao mar alto.
Só assim pode ser domesticada a brutalidade da experiência: buscando novas figura-se novas palavras para o desamparo humano, que está em carne viva na pandemia.
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