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SOBRE RECIPROCIDADE E MUTUALIDADE NO CONCEITO DE TERCEIRO ANALÍTICO DE THOMAS OGDEN

Marina F. R. Ribeiro



(...) Os dois inconscientes ajudar-se-iam mutuamente dessa maneira: até mesmo o "curador21" recebe algo de apaziguador daquele que ele cura, e vice-versa.

(Ferenczi, 1932)


Considerando que o conhecimento em ciências humanas é uma construção coletiva,22 podemos encontrar os pensamentos psicanalíticos em busca de autores possíveis além das fronteiras narcísicas dos proprietários de um conceito ou de uma teoria, levando em conta uma rede teórico-clinica intrincada e complexa e a cada momento da história da psicanálise.

Os pensamentos não tem proprietários, mas surgem justamente pela continua interação entre as pessoas,23 sendo referidos a partir de seus autores. Dessa forma, os conceitos são criados, descobertos e nomeados em diferentes épocas e a posteriori de diversos textos, em complexa intertextualidade. No campo da psicanálise, um autor necessita ter habilidade de captar, conceitualizar e narrar fenômenos clínicos de modo a articulá-los com os paradigmas teóricos existentes, criando, novas tramas conceituais e expandindo a teoria e a técnica psicanalíticas.


E, pois, fundamental para a psicanálise contemporânea a capacidade de historicizar e articular os conceitos, atravessando paradigmas24 com rigor e ética. Tenório Lima (2019), ao se referir ao livro A ética da terminologia, de Charles Sanders Peirce (1907), destaca a importância de se considerar e nomear os desenvolvimentos conceituais numa área de criação científica, pois essa atitude é expressão de gratidão e ética cientifica. Além disso, considerar essas transformações conceituais e técnicas favorece uma expansão e oferece consistência a psicanálise denominada contemporânea.


Este texto parte de uma experiência de leitura em estado de atenção flutuante, na qual surge uma indagação. Ao reler o artigo de apresentação do conceito de terceiro analítico, ao final do capitulo, Ogden (1996, p. 90) apresenta a seguinte ideia entre parênteses: "Analista e analisando não estão envolvidos num processo democrático de analise mutua". No mesmo parágrafo escreve: "(...) o terceiro analítico é uma construção assimétrica, pois é produzido no contexto do setting analítico, que e for- temente definido pela relação entre os papeis de analista e analisando".


A partir dessas duas frases, podemos construir outra: o terceiro analítico é uma construção produzida pela ética do setting analítico, no qual encontramos processos assimétricos de reciprocidade e mutualidade, que são descritos detalhadamente nos casos clínicos apresentados por Ogden e em vários de seus textos como fenômenos produzidos pelo terceiro analítico.


O termo assimetria, assim compreendo, refere-se a responsabilidade ética do analista na condução do processo analítico, sendo que podemos considerar, também, que ha uma simetria entre a mente do analista e a do analisando na sessão, no sentido de que a dupla esta imersa nas mesmas emoções no setting analítico. Em outras palavra5, o funcionamento mental do analista e do analisando na sala de analise estão em continua interação e são campos de observação para o analista, importante instrumento técnico na condução de uma análise. E, além disso, outro aspecto assimétrico á a formação25 do analista, uma espécie de treino e disciplina para entrar em contato com estados regredidos da mente e submergir destes com compreensões do funcionamento psíquico inconsciente do paciente e de si mesmo, e, também, ser capaz de formular uma construção e/ou uma interpretação a partir dessa experiência.


Bion (1992) usou uma metáfora que penso ser pertinente ao considerarmos a responsabilidade assimétrica do analista: o analista esta no campo de batalha, assim como o paciente; pode matar ou morrer mas o analista tem a responsabilidade do comando, precisa manter a sua capacidade de pensar. Lembremos que Freud (1913) usou a metáfora do jogo de xadrez para se referir a situação analítica. Bion considera o paciente o nosso melhor colega, a única pessoa que estaria de posse da própria verdade emocional.


A partir desse breve comentário de Ogden entre parênteses, citado acima, este texto evolui; tendo a intenção de construir desdobramentos para um pensamento ainda sem espaço no corpo do texto, mas que precisava estar presente, um pensamento expresso na negativa, talvez porque positivá-lo levantaria novas questões. Um pensamento que abriria uma ferida na história da psicanálise, especificamente o experimento da análise mutua e seu relato no Diário clinico (1933). No referido texto, Ogden (1996) estava apresentando pela primeira vez o conceito de terceiro analítico; seria muito delicado qualquer aproximação que pudesse gerar uma compreensão equivocada.


Tentando trazer uma nova mirada sobre o que é mutuo ou reciproco entre analista e analisando, é importante considerar o aprisionamento negativo que imediatamente nos invade ao nos depararmos com a expressão "análise mutua". Mutualidade vem de "mutuo", que vem do latim mutuus, que significa reciproco, feito em troca; qualidade ou caráter do que e mutuo, reciprocidade. A expressão "processos assimétricos de reciprocidade entre analista e analisando" e menos saturada e possibilita outras conexões e pensamentos, seguiremos com ela.


No livro Autenticidad y reciprocidad. Un dialogo con Ferenczi (2017) encontramos no prólogo de Bolognini o reconhecimento de que muitos conceitos teóricos e clínicos da psicanálise contemporânea advém dos textos de Ferenczi, que parte considerável da teoria e da técnica atual nascem do laboratório ferencziano. Mas como Ogden e Ferenczi se conectam? O que se segue ira apresentar algumas possíveis reverberações, presenças indiretas, sutis, do laboratório ferencziano no pensamento de Ogden, especificamente a questão da reciprocidade no conceito de terceiro analítico.


Penso ser relevante dimensionarmos a presença do pensamento ferencziano na psicanálise contemporânea, o enfant terrible da psicanálise, cujas ideias começam a ser compreendidas e retomadas nos últimos anos. Ele era, de fato, um clinico genial, ousado e intuitivo, que teve a coragem de escrever sobre a afetação reciproca e inconsciente entre analista e paciente.


Podemos dizer que Ferenczi ficou por décadas na latência da história da psicanálise, mas produzindo efeitos em seus sucessores, sendo os mais evidentes nos textos de Balint e Winnicott. Mas há também os efeitos silenciosos e não explicitados na obra de Melanie Klein. A influência do pensamento de Ferenczi na clinica de Klein e na postulação de seus conceitos é um campo de pesquisa ainda a ser mais bem desenvolvido. Klein foi sua paciente por alguns anos; no entanto, devido aos problemas políticos institucionais da época (a partir de 1930), nao era recomendado citar os textos de Ferenczi; diferentemente de Karl Abraham, seu segundo analista, que pode ser referido livremente.


Nesse sentido, há uma construção teórica na psicanálise marcada pelas intensas paixões, amor e ódio no campo das transferências e contratransferências, a partir de diferentes gerações de analistas. Podemos refletir sobre a história da psicanálise a partir dessas forças transferenciais e contratransferências e seus efeitos na construção teórica da psicanálise, considerando que são conjecturas.


Ogden (2010) escreve que não só as contribuições anteriores afetam as posteriores, seguindo uma ordem cronológica, mas também a leitura de autores contemporâneos altera a nossa leitura de textos clássicos da psicanálise. Ao revisitarmos Ferenczi, podemos encontrar o que estava lá, mas não estava, ideias que ainda não podiam ser pensadas, mas, ainda assim, se faziam presentes no texto para um leitor no futuro, no tempo do a posteriori, encontrando novos sentidos e ressignificando textos clássicos.


Nessa direção, Coelho Junior (2019) escreve um artigo com o significativo titulo: De Ogden a Ferenczi: a constituição de um pensamento clínico contemporâneo/From Ogden to Ferenczi - the constitution of a contemporary clinical thought. O autor inverte a temporalidade a que estamos acostumados, sugerindo que, no a posteriori das construções teóricas psicanalíticas, podemos encontrar conexões e ressignificações, tanto no sentido da progressão temporal como no sentido inverso, dentro das inúmeras intertextualidades (Paz, 1984) possíveis. Faz então uma espécie de revitalização das possíveis conexões com o Iegado da obra de Ferenczi, do qual Ogden parece ter usufruído na construção do seu pensamento, provavelmente por meio dos textos de Balint e Winnicott.


Sigo na mesma direção sugerida por Ogden (2010), um leitor no futuro buscando as ressonâncias do pensamento de Melanie Klein, autora estudada por Ogden, no que se refere especificamente ao conceito de identificação projetiva e seus aspectos de mutua afetação entre analista e analisando.


O pensamento de Thomas Ogden encontra-se na interseção entre Bion e Winnicott, tomando então esse autor um dos psicanalistas representantes da psicanálise contemporânea, um autor transmatricial.26


Além das possíveis conexões com Klein, fiquei intrigada se Bion teria tido algum acesso as obras de Ferenczi. Bion fez sua formação psicanalítica justamente no período em que os textos de Ferenczi sofreram um tipo de desmentido pelas instituições psicanalíticas (Kupermann, 2019). Em um primeiro momento, não encontrei nenhuma conexão, a não ser o fato de que Bion fez sua análise de formação com Klein por 8 anos (1945-1953,27) lembrando, novamente, que Klein tinha sido paciente de Ferenczi por alguns anos. Para o leitor que não esta familiarizado com a sua obra, Bion considera o funcionamento tanto da mente do anaIista como do analisando na sessão em complexa interação. O conceito de Bion de transformação implica tanto as transformações do analisando como as do analista na sala de análise, transformações reciprocas, concomitantes e assimétricas.


Surpreendentemente, encontrei uma nota introdutória escrita pelo organizador da coletânea de artigos de Ferenczi, John Rickman, no livro Further contributions to the theory and technique of psycho-analysis (1926), na qual ele escreve sobre a importância dos trabalhos de Ferenczi. John Rickman foi o primeiro analista de Bion (1937-193928), posteriormente um colega, também psiquiatra, durante a Segunda Guerra Mundial, e um interlocutor próximo. Trabalhou com Bion com grupos de soldados traumatizados de guerra, momento no qual Bion desenvolveu suas teorias sobre grupos. Rickman foi analisando de Freud (1920), de Ferenczi (1928) e de Klein (1934-1941),29 posteriormente foi aluno, tradutor e organizador da coletânea dos textos de Ferenczi (Rickman, 1957; King, 2003). Como organizador de uma coletânea, que não seguia uma cronologia, foram textos específicos escolhidos por Rickman; ou seja, seleção possível apenas para alguém que conhecia muito bem os trabalhos de Ferenczi, e, dessa forma, provavelmente algo do legado do laboratório ferencziano tenha sido transmitido a Bion por ele e por Melanie Klein conexões a serem mais bem desenvolvidas em outros trabalhos.


Apresento a seguir uma analise textual da transformação do conceito de identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico. Considerando que parte da expansão da psicanálise contemporânea provem desses sutis deslizamentos teóricos (Cintra & Ribeiro, 2018).


Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico


Em entrevista a Luca Di Donna, em 2013 (publicada em 2016), Ogden fala acerca de uma possível linha de desenvolvimento ao longo da sua obra,30 uma questão difícil para um autor que escreveu acerca de tantos temas diferentes.


Ogden (2013) relata que aquilo que primeiramente o intrigou foi como duas pessoas pensam; questão que já aparece nos seus artigos iniciais: On projective identification (1979), sendo republicado em 2012 no livro Projective identification: the fate of a concept. No seu primeiro livro, intitulado Projective identification and psychotherapeutic technique, de 1982, desenvolve mais amplamente as ideias que estão condensadas no artigo, trazendo várias vinhetas clinicas. Tendo sido marcante em sua obra a habilidade de narrar os detalhes da experiência emocional vivida na sessão analítica, e de forma imagética, em especial, como duas mentes pensam juntas. Ogden conduz o leitor a intimidade da sala de analise, fazendo com que a leitura seja, em si, uma experiência transformadora.31


Na entrevista de 2013, Ogden diz que raramente usa o termo identificação projetiva, pois cada um tem uma definição e uma compreensão do conceito. Prefere, então, descrever o fenômeno: trata-se da mãe e seu bebê criando uma terceira mente, sendo que a experiência emocional é transformada na vivência do terceiro. Aqui, temos a passagem do conceito de identificação projetiva para o conceito de terceiro; ou seja, como duas pessoas pensam a partir de uma terceira mente que se constitui no encontro. Ogden afirma:


[...] o conceito kleiniano de identificação projetiva é um passo monumental na ampliação do entendimento analítico da natureza e das formas da tensão dialética subjacente a criação do sujeito. (Ogden, 1996, p. 7)


Ogden inicia o artigo de 1979 destacando que a identificação projetiva é um fenômeno que ocorre tanto na esfera intrapsíquica quanto na esfera das relações interpessoais; ou seja, já na primeira frase do texto, ele deixa claro sua compreensão intersubjetiva do conceito. Trata-se, na perspectiva do autor, de um tipo de defesa, um modo de comunicação, uma forma primitiva de relação de objeto e o caminho para uma mudança psicológica. Nos textos clássicos de Klein, a identificação projetiva é compreendida como defesa e como forma primitiva de relação de objeto; já Bion a concebe como modo de comunicação e um caminho para uma mudança psicológica. Podemos dizer que, a partir dessa expressão, começa a aparecer a marca autoral de Ogden.32 As transformações conceituais estão nesses pequenos deslizamentos de sentidos, nas sutilezas do texto e no uso das expressões, como dito anteriormente.


Destaco que esse texto foi escrito há 40 anos (Ogden, 1979), momento no qual a compreensão da intersubjetividade entre analista e analisando era um tema pouco abordado, talvez de difícil aproximação, como ainda é atualmente. A liberdade de pensamento do autor permite que ele faça seus "atravessamentos de paradigmas" em uma época em que isso pouco acontecia. Movido por suas experiências clínicas com esquizofrênicos, Ogden busca uma interlocução com textos e autores33 nos quais encontra um sentido34 para o que experenciava com esses pacientes. Seus dois primeiros livros dão testemunho dessa trajetória de apropriação e apresentação de autores ingleses poucos conhecidos Estados Unidos: Klein, Winnicott, Bion, Balint, entre outros.35


Retomando, destaco algumas ideias presentes no artigo de 1979, no qual há varias conexões interessantes, apresentadas de forma condensada. Ogden faz articulações da identificação projetiva tanto com conceitos Winnicott quanto com conceitos e Bion. A partir de Winnicott, mesmo que esse autor pouco se refira ao conceito e identificação projetiva, Ogden escreve que se trata de uma forma transicional de relacionamento, constituindo um tipo primitivo de relação objetal, um modo básico de ser com o objeto ainda não separado. Em outras palavras, aloca de forma surpreendente o conceito kleiniano na teoria de Winnicott.


Já no que se refere a Bion, Ogden (1979) destaca que o autor compreende o conceito como uma interação interpessoal, aproximando a experiência da identificação projetiva da ideia de um pensamento sem pensador, um pensamento em busca de um pensador: ser um continente e, pois, pensar um pensamento ainda não pensado. Afirma ainda que, na perspectiva bioniana, quando não há uma mente continente para a identificação projetiva, isso provoca um impacto desorganizador, tanto na relação mãe-bebê, como entre analista-paciente.


Além de Klein, Winnicott e Bion, no artigo de 1979, Ogden cita Rosenfeld, Balint, Searles, Grotstein, Robert Langs, entre outros, reflexo da sua atitude investigativa e compromissada com os fenômenos clínicos que estava investigando. Ogden aloca o conceito de identificação projetiva fora dos limites dos autores kleinianos, e vai além, ao falar das implicações técnicas do conceito.


Ogden (1979) aborda um tema ainda hoje delicado, justamente a mesma questão apresentada no Diário clínico de Ferenczi (1933): o analista é um ser humano, com passado, repressões, conflitos, medos e dificuldades psicológicas próprias.36


(...) Mas os pacientes recusam a falsa doçura do mestre irritado em seu foro intimo (...) E acaba-se finalmente por indagar: não será natural, e também oportuno, ser francamente um ser humano dotado de emoções, ora capaz de empatia, ora abertamente irritado? O que quer dizer: abandonar toda a "técnica" e mostrar-se sem disfarces, tal como se exige do paciente.(1932, p. 132)


Para Ogden, quase 60 anos depois, a principal ferramenta do analista e sua habilidade em entender seus próprios sentimentos e, também, o que esta acontecendo entre ele e o paciente; ou seja, não é abandonar a técnica, mas é tomar a sinceridade e a verdade emocional elementos pertinentes a técnica. Para tanto, o analista necessita ter competência de formular de maneira clara e precisa sua compreensão, usando palavras que tenham um efeito terapêutico, afinadas com o tempo do paciente, o timing da interpretação. Futuros textos de Ogden se debruçam sobre a questão da interpretação,37ou, como ele nomeia, do dialogo analítico.38


Prosseguindo, destaco a compreensão de Ogden de que a identificação projetiva é um evento interpessoal, pavimentando o caminho para a construção do conceito de terceiro analítico. Essa maneira, evidentemente intersubjetiva, de entender a identificação projetiva já esta presente em outros autores, principalmente em Bion.


O artigo (Ogden, 1994) em que postula o conceito de terceiro analítico foi escrito em comemoração ao septuagésimo-quinto aniversário do The International Journal of Psychoanalysis. Talvez devido a esse marco histórico, Ogden tenha iniciado o texto afirmando que já não e mais possível pensar analista e analisando como sujeitos separados, sendo então o movimento dialético entre as duas subjetividades um fato clinico importante. Questão essa que já intrigava Ferenczi no Diário clínico:


É como se duas metades da alma se completassem para formar uma unidade. Os sentimentos do analista entrelaçam-se com as ideias do analisado e as ideias do analista (imagens de representações) com os sentimentos do analisado. Desse modo, as imagens que de outro modo permaneceriam sem vida tomam-se episódios, e as tempestades emocionais, sem conteúdo, enchem-se de um conteúdo representativo. (Ferenczi, 1932, p. 45)


Ogden considera que analista-analisando também formam uma unidade que coexiste em tensão dialética. O autor compreende a dialética da seguinte forma:


A dialética é um processo no qual elementos opostos se criam, preservam e negam um ao outro, cada um em relação dinâmica e sempre mutativa com o outro. O movimento dialético tende para integrações que nunca se realizam por completo. (Ogden, 1996, p. 12)


Imagens de representações, como Ferenczi escreve (citado antes) lembra-nos o conceito de rêverie. Tempestades emocionais sem conteúdo evocam o conceito de elemento-beta; a experiência em estado bruto que por meio das imagens (imagens de representações), as rêveries do analista podem se transformar em algo com conteúdo representativo e dessa forma, podem ser narradas pelo analista. Impressionante Ferenczi descrever esse processo psíquico em 1932, uma intuição clinica genial, mas ainda sem conceitos, ou com conceitos pouco consistentes.


O conceito rêverie é originalmente de Bion (1962), passa a ser a maneira como o analista apreende os objetos analíticos, uma criação, uma manifestação do sonho da vigília do terceiro analítico. Ogden (1994) escreve que a experiência intersubjetiva do terceiro é apreendida por meio das rêveries. Se nos inspirarmos na expressão paradoxal de Winnicott, de que a mãe é descoberta e encontrada pelo bebê, podemos pensar que a rêverie é criada e encontrada pelo terceiro analítico.


Para apresentar brevemente o conceito de rêverie, retomo algumas ideias expressas em artigo (Ribeiro, 2019) anteriormente escrito: a rêverie, como o próprio sentido da palavra revela, é o sonho acordado, o devaneio. A capacidade imaginativa da mente é a rêverie; implica a permeabilidade e a disponibilidade mental e emocional a comunicação do outro. Grande parte do movimento psíquico de uma sessão implica a capacidade de rêverie do analista e a possibilidade do seu uso nas interpretações. No entanto, essa experiência, muitas vezes, é desorganizadora, pois é vivida como algo extremamente pessoal e intimo, compreendida inicialmente mais como uma falha técnica do que como algo que emerge do encontro entre as duas mentes presentes na sala. Se pudermos fazer uso dela, a rêverie funciona como uma verdadeira bússola, indicando nortes do campo emocional gerados pelo encontro de duas mentes: do analista e do analisando (Ogden, 2013). Dizendo de outra maneira, a rêverie é a maneira como é criado e encontrado o objeto analítico durante a sessão, uma criação do terceiro analítico.


Em um artigo posterior ao de 1994, Ogden descreve o terceiro analítico da seguinte forma:

Embora não possamos prever a natureza da experiência emocional que será gerada no trabalho com uma pessoa que nos consulta, nossa meta como analistas é quase a mesma com todo paciente: a criação de condições nas quais o analisando (com a participação do analista) possa ser mais capaz de sonhar seus sonhos não sonhados e interrompidos. Embora possa parecer que o analista inicialmente é usado pelo paciente para sonhar os sonhos não sonhados do paciente "por procuração", os sonhos do analista (seu devaneios na situação analítica) não são desde o princípio nem exclusivamente seus nem do paciente, e sim os sonhos de um terceiro sujeito inconsciente que é ambos e nenhum deles, paciente e analista. (Ogden, 2010, p. 23)


Algo que é de ambos e de nenhum deles, algo que é experienciado por ambos de maneiras diferentes, algo mutuo, processos assimétricos de reciprocidade e mutualidade entre analista e analisando.


Um leitor no futuro


A reflexão feita aqui não diz respeito a análise mutua, como relatada por Ferenczi, mas a processos assimétricos de mutualidade e reciprocidade presentes no conceito de terceiro analítico, compreendido como uma transformação do conceito de identificação projetiva. É como se Ogden tivesse colocado o conceito de identificação projetiva em um microscópio potente - a capacidade de observação do analista - e tivesse observado fenômenos sutis e sofisticados envolvendo a dupla analítica e a formação de um terceiro sujeito inconsciente.

Para finalizar, faço uma conjectura: será que esses fenômenos sutis do funcionamento do analista e do analisando na sessão, formando uma outra unidade, um terceiro, foram intuídos por Ferenczi no seu Diário clínico? Conjecturo que sim.


Retomando a ideia de Ogden (2010) relatada acima, de que um leitor no futuro ira encontrar em um texto clássico o que estava lá, mas não estava, estava como uma potencialidade do pensamento. 0 Diário clínico é um texto no qual encontramos varias intuições de Ferenczi, mas ainda sem conceitos, ou seja, uma intuição cega. A intuição sem conceito é cega, o conceito sem intuição é vazio, a intuição precisa se associar a um conceito para que exista um pensamento39 (Bion, 1970).


Podemos dizer que foram precisos quase 60 anos, vários textos sobre contratransferência, identificação projetiva, contraidentificação projetiva, inúmeras discussões e desmentidos nas instituições psicanalíticas para que chegássemos ao conceito de terceiro analítico, entre outros.40 O que é experienciado de forma mutua e reciproca entre analista e analisando passa a fazer parte da técnica, e o mais importante, um instrumento de observação analítica potente e transformador para a dupla analista e analisando. Agora temos a intuição de Ferenczi no Diário Clínico (1933) associada ao conceito de terceiro analítico de Ogden (1996); ou seja, um pensamento clínico sofisticado para um leitor no futuro, nós!


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Notas:


20. Algumas ideias presentes neste texto também se encontram no artigo Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um auto, (Ribeiro, 2020). Este texto foi produzido no âmbito do LIPSIC - Laboratório interinstitucional de Pesquisa em Psicanalise Contemporânea (IPUSP e PUCSP).


21. No texto de Ferencz! esta a palavra em inglês: healer.


22. "Lembro a concepção de Gadamer de que o modelo para o método de produção de conhecimento em Ciências Humanas e o dialogo, do qual participam os interlocutores em pé de igualdade, ou seja, sem que qualquer um deles tenha controle do intercâmbio. O conhecimento e construção coletiva (Mandelbaum, 2019, p. 99).

23. ideia de inspiração na obra de Bion, os pensamentos antecedem o pensador. Como escreveu Borges (1923/2007): Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de ter sido, previamente, por mim usurpado. Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstancia de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator".


24. Atravessamento de paradigmas é uma expressão de Figueiredo, LC. (2009).


25. A formação do analista, que consiste no tripé analise, supervisão e conhecimento teórico. Destaco a importância da analise do analista durante a formação analítica e, também, posteriormente, na condução de suas análises; questão cara a Freud e Ferenczi em vários textos.


26. Figueiredo e Coelho Junior (2018) postulam duas grandes matrizes para a psicanálise: a freudo-kleiniana e a ferencziana. As matrizes são formas de adoecimento, e a cada uma correspondera uma estratégia de cura. Ogden e considerado um autor transmatricial, pois seu trabalho parte de um estudo aprofundado tanto da obra de Winnicott, representante da matriz ferencziana, como da obra de Bion, representante da matriz freudo-kleiniana.


27. Bleandonu, G. (1993, p. 98).


28. Bleandonu, G. (1993, p. 55).


29. Bleandonu, G. (1993, p. 55).


30. A obra de Thomas Ogden abarca artigos publicados de 1974 a 2018.


31. A ideia do terceiro sujeito criado na experiência de ler esta presente no primeiro capitulo do livro Os sujeitos da psicanálise (Ogden, 1996).


32. Uma característica dos textos de Ogden e que ele usa o termo psicológico com certa frequência, especificamente no trecho referido: mudança psicológica.


33. Podemos conjecturar que o fato de predominar na psicanálise americana a psicologia do ego de Hartman fez com que Ogden buscasse os horizontes ingleses da psicanálise, continuando seus estudos na clinica Tavistock, em Londres.


34. Podemos pensar no sentido como uma verdade; verdade compreendida a partir de Bion (a verdade emocional como o alimento primordial da mente); ou seja, também buscamos, nos textos que escolhemos para ler, um sentido para a experiência clinica.


35. Ogden faz essa apropriação e apresentação desses autores para os americanos, principalmente nos meus primeiros livros: Projective identification and psychotherapeutic technique (1982) e The matrix of the mind: object relations and psychoanalytic dialogue (1986).


36. Sendo que a analise e a supervisão do analista o habilitam mas não o isentam da sua humanidade, muito pelo contrário, é a humanidade do analista que torna analista.


37. The transference is a topic of conversation, which at times is very helpful in understanding something of what it is that Is preventing the patient from 'speaking his mind'. I don't find that the term interpretation well describes how I speak to patients. I think the phrase 'talking with the patient better captures the feeling of the conversation I have with patients than does the phrase 'making an interpretation (Ogden, 2016, p/171)


38. O autor cria formulações técnicas sofisticadas, como a expressão "falar como se estivesse sonhando (Talking as dreaming, 2007).


39. Bion se inspirou na ideia kantiana de que a intuição sem conceito é cega, e o conceito sem intuição é vazio.


40. Cabe lembrar também do conceito de campo analítico: postulado pelo casal Baranger (1961- 1962/2010) na década de 1960, e internacionalizado na psicanálise por Antonino Ferro na década de 1990 e nos anos 2000. Trata-se de considerar o encontro das duas subjetividades, analista e analisando, em constante interação, sendo então gerados tanto novos pensamentos como, também, erguidas defesas inconscientes, os denominados baluartes, formados a partir de uma fantasia inconsciente da dupla. Tudo o que acontece no campo analítico é fruto do funcionamento tanto da mente do analista como da mente do analisando em complexa interação. Estudiosos da obra de Melanie Klein, os Baranger estavam imersos no conceito de identificação projetiva; o que nos leva a pensar que a compreensão da situação analítica como um campo bi pessoal também seja um desdobramento do extenso conhecimento que esses autores tinham da obra de Klein, sendo difícil dimensionar essas intersecções teóricas.


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