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“VAI PASSAR!”: O LUGAR DA ESPERANÇA NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA E NO ENCONTRO ANALÍTICO

Que nome dar à Esperança?

Mas se através de tudo corre a esperança, então a coisa é atingida. No entanto a esperança não é para amanhã. A esperança é este instante. Precisa-se dar outro nome a certo tipo de esperança porque esta palavra significa sobretudo espera. A esperança é já. Deve haver uma palavra que signifique o que quero dizer.


Clarice Lispector




Iniciamos com as palavras de Clarice Lispector que colocam a esperança no instante e que, tal qual substância preciosa, pode, correndo através de tudo, garantir, atingir, dar sustentação para o que se quer alcançar. Não está no futuro porque não é mero otimismo a olhar para frente, mas esperança profunda, densa, enraizada nos recursos anímicos, distinta da expectativa. Tão valiosa, que pertence à ordem do indizível, do inefável, ao mesmo tempo que é sustentação para o que se vai alcançar. Clarice dá um estatuto especial e distinto do esperar (será que espera é aqui equivalente a estado subjetivo?), sugere que a esperança se enraíza no profundo, na seiva que alimenta e é potência. Que nome dar, qual o significado possível para a esperança nessa dimensão tão constituinte do ser? Este é o clamor de Clarice.


É em consonância com esse mesmo lugar tão fundamental dado à esperança no coração da vida e do acontecer humano, que seguiremos em nossa reflexão:


Assim como a inserção da psique no corpo, a relação com a realidade e a integração, estes que seriam processos iniciais do desenvolvimento segundo Winnicott (1945, p.274) não são naturais, mas sim conquistas alcançadas a partir do encontro com o outro; a esperança não é algo com que se nasce. Ela é tecida no amor dos começos, advém de um encontro singular com o objeto primário. Ela é mais-além, não coincide com estado de ânimo - é algo da ordem essencial para a constituição psíquica e para a capacidade de crer, capaz de conduzir à confiabilidade pessoal assim como à crença em geral.


Refletir sobre a esperança deve, portanto, conduzir-nos não para sentidos (rasos) de expectativa ou otimismo: não se trata de um sentimento ou de sensação. Esperar, como ressalta Ferraz (2019, p.110), é ontológico. Não é o esperar das superfícies a que se refere (e repudia) Clarice. Estar de posse da esperança, nessa dimensão constituinte do vir a ser do indivíduo, inaugura este como criador de si e do mundo-como um ser da ação. Tem assim um início e é iniciador de mundos, seguindo ainda o pensamento de Ferraz (2019, p.106). Lembramo-nos aqui de Winnicott que afirmava que “o mundo é criado de novo por cada ser humano, que começa o seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento” (1988/1990, p.130). Devo aqui ressaltar que o presente texto muito se nutre do pensamento de Winnicott (embora não apenas dele); mas convido o leitor a iniciarmos com suas contribuições apoiadas no texto de Ferraz (2019) “A espera e o gesto: um olhar sobre a importância da esperança e sua psicopatologia a partir da obra de D.W.Winnicott”.


Assim, retornemos a refletir sobre a ação: esta, no pensamento winnicottiano, tem relação não com o mero fazer, mas com o gesto, o qual funda o sentimento de que a vida vale a pena assim como a capacidade de estar vivo. Esperança e criatividade são dois pilares constituintes da subjetividade e são indissociáveis, tendo sua origem no encontro com o objeto primário: a mãe que vai ao encontro da necessidade de seu filho de modo a tornar real o que ele está pronto para criar. A partir desse começo, o infante pode vivenciar a experiência de tornar-se real, e seguir sustentado pela esperança: algo que move e movimenta, que ,caso se perca ou nem se tenha, resta ao ser, “sub-viver” à margem da vida, resta-lhe o adoecimento severo ou mesmo uma experiência de morte.


A esperança como pilar fundante do “esperar” (aqui esperar só ganha espessura vital se ancorado na esperança), enquanto potência de vida, oferta abertura à espontaneidade que emerge do self verdadeiro. Se o gesto espontâneo, como diz Winnicott, é o self verdadeiro em ação (1988/1960, p. 135), este inaugura, seguindo ainda Ferraz, “a capacidade do indivíduo de esperançar” (2019, p.113).


Quando acordamos, levantamos não apenas para o dia, mas para a vida, para a difícil tarefa de existir, para o enfrentamento dos desafios que o viver nos impõe e, é fundamentalmente a esperança que é motor, âncora e, simultaneamente, ponto de partida para cada amanhecer. No outro extremo, caso ocorra o desencontro do indivíduo (em seu início) com o ambiente ou no decorrer de sua infância; assistimos a uma dimensão catastrófica, a um fracasso de entrada na vida na medida em que se extravia ou nem se constitui a capacidade de “esperar” a partir do registro ontológico.


Em sintonia com o que vem sendo apresentado até agora, acompanhamos as reflexões de Luís Cláudio Figueiredo (2003) em seu texto “O paciente sem esperança e a recusa da utopia”. Também este autor reconhece a esperança como condição imprescindível “ao bom funcionamento mental e que opera em planos profundos e inconscientes do psiquismo” (2003, p.160). Reconhecemos, portanto o mesmo status de fator estruturante e ontológico assinalados acima: a esperança como essencial na constituição da subjetividade. Destaco aqui a proposição de. Figueiredo de inserir um pensamento sobre a esperança na direção de um discurso metapsicológico, entretanto não dissociável da fenomenologia da clínica.


De modo semelhante ao já discorrido, Figueiredo não pretende pensar a esperança como estado subjetivo, mas como “um princípio” decorrente de um encontro especial com o objeto primordial. Recorrendo a vários autores em seu texto, destacamos Ernst Bloch (1952-9) e seu livro intitulado “O princípio da esperança” – daqui Figueiredo ressalta a diferença entre a esperança como “estado subjetivo” e a Esperança a que Bloch dá um estatuto antropológico universal (1954). A partir daí, Figueiredo considerará a Esperança (esta que deveríamos manter como maiúscula) como um princípio fundamental na estruturação do aparelho psíquico.


A esperança é proteção essencial, sustentação para o confronto com os percalços da vida e enfrentamento das tarefas do existir. O caráter protetivo da esperança é assim ressaltado por Figueiredo (2003): “A esperança cria uma defesa contra a queda no nada, nada de objeto, nada de relação e nada de self, funcionando então como a base para a reestruturação do psiquismo” (p.167).


Retornando à esperança como princípio, esta diz respeito à expectativa de continuidade do ser e do self; uma continuidade não mecânica, não mesmificante. Possibilita, ao contrário; “a transformação e o encontro feliz do objeto e do si mesmo exatamente onde e quando eles precisavam se encontrar” (FIGUEIREDO, 2003, p. 171).


A esperança possibilita trânsitos, liberta das paralisias que dominam os adoecimentos psíquicos, desde as anacrônicas formas do viver até o não-viver. E, se pensarmos que a saúde constitui o trânsito entre os vários estados do ser; a esperança é motor, tem função estruturante de dimensão primordial para a abertura a novos caminhos e enfrentamentos do existir.


Aqueles que se estruturaram nas terras sólidas da esperança são capazes de “sonhar com uma vida melhor”, o que , segundo Ernest Bloch (1954) , constitui condição universal da condição humana. Aqui, como ressalta Figueiredo, embora o futuro esteja aí implicado, “não se trata de uma vivência ou fantasia de um tempo futuro, mas de uma abertura para ele, sobre o qual uma vivência temporal pode de fato se assentar sem, contudo, com ela se confundir” (p.160). Portanto, reafirmamos a esperança em sua espessura: esperança-abertura, esperança-fertilidade, esperança-fé; enfim, como já foi falado, como condição imprescindível para o bom funcionamento do aparelho mental e para a saúde psíquica. Esperança e sentido para a vida estão intrinsecamente ligados.


As condições para a instalação de uma esperança fundamental dependem da alternância entre ausências e presenças, idas e vindas bem dosadas; o objeto primário não pode exceder em intrusões ou ausências, o que lançará o indivíduo a um funcionamento sob a forma de cisão, esta, por sua vez, evocadora de desesperança e andanças em terras movediças, barcos à deriva, naufrágios, instabilidade e extrema fragilidade frente aos desafios impostos pela vida.


A desesperança congênita

Quarta-feira de Cinzas


Porque não mais espero retornar

Porque não espero

Porque não espero retornar

A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto

Não mais me empenho no empenho de tais coisas

(Por que abriria a velha águia suas asas?)

Por que lamentaria eu, afinal,

O esvaído poder do reino trivial? ...

T.S. Elliot


E quando a esperança não se instala?


Winnicott supõe uma falha grave na comunicação mãe-bebê que “aborta” o que seria a matriz básica da possibilidade de ter fé; em suma, da constituição da esperança. Consonante com o pensamento de Figueiredo ocorre nesses casos uma violenta ausência do princípio de esperança e daí constatamos uma série de adoecimentos. Destacamos os pacientes descritos por Winnicott em “O Medo do colapso” (1963), quando uma brutal desesperança associa-se a um medo da catástrofe lançado no futuro, entretanto já acontecido precocemente. Mas ainda os pacientes falso self, esquizoides, os narcisistas, os borderline e outros: aqui nos referindo a adoecimentos severos frutos da quase total ausência da Esperança. Entretanto, sempre que notícias de desesperança (provenientes de inícios marcados por alguma dimensão de desencontro com os objetos primários) nos chegam, ficamos também vulneráveis a paralisias e expectativas traumáticas.


No texto de 1949 “Recordações do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade”, Winnicott apresenta o que ele denomina de desesperança congênita, assim como discorre sobre trauma precoce:


“Pode-se ressaltar que o mais importante é o trauma representado pela necessidade de reagir. A reação neste estágio do desenvolvimento humano significa uma perda temporária de identidade. Isto faz surgir um sentimento extremo de insegurança e forma a base para uma expectativa de ulteriores exemplos de perda de continuidade do self e mesmo uma desesperança congênita (mas não herdada) com relação à conquista de uma vida pessoal’ (p.326)


A desesperança congênita resulta de um fracasso de uma experiência extremamente precoce de mutualidade, esta capaz de constituir uma crença na confiabilidade, assim como a crença em: crença em Deus, na vida, no outro, na natureza humana. O indivíduo fica sujeito a uma base de uma desesperança congênita (mas não herdada), a qual o desacredita à consecução de uma vida pessoal. Figueiredo (2003, p.165) afirma que na desesperança congênita, algo do indivíduo foi desfalcado quando ainda não o pôde ter e usufruir e destaca esse conceito como mais adequado para o entendimento da esperança ou de sua falta como princípio de funcionamento psíquico.


Assim como na desilusão precoce, descrita em texto homônimo de Winnicott (1949), o trauma primitivo está na base da vacilação extrema da Esperança ou mesmo de sua não instalação. Entendemos como trauma “aquilo contra o que o indivíduo não possui defesa organizada; daí advém um estado de confusão, numa reorganização das defesas primitivas” (1949, p.206).


Vale ressaltar a noção paradoxal de desesperança congênita, mas não herdada, portanto adquirida: instalou-se num momento muito primitivo da vida, próximo ao nascimento ou mesmo no nascimento; entretanto, proveniente das condições ambientais. Já a desilusão precoce, noção próxima à mencionada acima, também provém de trauma precoce, mas num momento posterior à desesperança congênita.


São situações que demandam uma regressão terapêutica, para que assim se constitua, como Figueiredo afirma, uma “esperança genuína” (2003, p.166). Isso requer, entretanto, que um solo-forração de confiabilidade seja tecido ali onde as terras do porvir foram devastadas pelos traumas precoces. Aqui, adentramos nas questões técnico-éticas que envolvem o ser e o fazer do psicanalista na direção da tessitura da esperança, considerando esta essencial na oferta de impulsões vitais ao indivíduo, especialmente quando este se apresenta refém de experiências de quase-morte.


“Vai passar”: o analista como sustentador da esperança do paciente desesperançado


A afirmativa a partir da qual conduziremos uma reflexão de como se dará o trabalho clínico nessas situações é: “o paciente precisa do suporte da esperança do analista”, como destaca Ferraz (2019, p.110). Este autor acrescenta que isso precisa acontecer “enquanto (o paciente) só consegue esperar que em algum momento seu gesto espontâneo que o liga às raízes da criatividade primária, fonte da vida e do sentir-se vivo, possa acontecer sem que o mesmo se sinta no perigo de ser ultrajado” (p.109).


Podemos pensar que o analista que se apropria de seus recursos psíquicos e é capaz trabalhar de modo suficientemente bom, precisa que (o princípio) Esperança nutra-o e o sustente tanto em seu ofício como em seu viver. Aqui lembramos as palavras de Winnicott: “é preciso que haja no analista uma crença na natureza humana e nos processos de desenvolvimento para que algum trabalho possa ser feito, e isto é rapidamente percebido pelo paciente” (1954-5, p.478).


De posse dessa Esperança na natureza humana, que aqui Winnicott nomeia “crença”, o analista poderá sustentar o “vai passar” – uma expressão (tal qual a madeleine de Proust que convoca a aberturas e disseminações inconscientes) que remete ao ecoar da voz materna, da mãe que pôde assegurar à criança (no âmbito da ilusão constituinte) que nada iria lhe acontecer, que o mal que a invadia iria ceder espaço a uma bem-aventurança.


O “vai passar” dirigido pelo analista ao paciente desesperançado nutre com brotos de esperança- mesmo que não precise ser verbalizado- os caminhos, por vezes árduos, que precisarão ser atravessados. Aqui situamo-nos numa direção clínica paradoxal:


Podemos mesmo enunciar essa expressão-acalanto, mas de posse do reconhecimento do terror que habita o paciente. Figueiredo (p.167-168) destaca no texto que estamos acompanhando, a extrema importância de transmitir a segurança de que todas as manifestações de desesperança congênita encontrarão sustentação no setting e na pessoa do analista. Figueiredo afirma: “não se trata de combater a desesperança congênita com discursos otimistas e ‘esperançosos’, ilusórios ou evasivos, mas ao contrário, com a corajosa determinação de encarar e falar abertamente do mais difícil e menos esperançoso” (p.168).

Lembramo-nos ainda da fala de um paciente a Winnicott (1960): “A única vez em que senti esperança foi quando você me disse que não podia ver esperança alguma, e você continuou a análise” (p.139).


Esse reconhecimento-testemunho do sofrimento do paciente é o manejo adequado e necessário: o pior manejo seria “desmentir” a dor e sua desesperança.


De posse dessa comunicação, que pode ser direta ou silenciosa, comunicação da verdade do que se assiste, podemos inclusive anunciar com todas as letras: “vai passar”. Esse é o paradoxo: poder dizer e simultaneamente sermos testemunhos da extrema dor. Não é um mero dizer, discurso otimista, mas a evocação da palavra materna de modo a temporalizar a dor que se apresenta como dor sem fim.


O “vai passar” pode ser o modo de temporalizar o presente eterno de agonia, tanto da criança quanto do paciente adoecido, instalando uma linha sustentadora de início, meio e fim - de passado, presente e futuro. Winnicott também nos ensina isso com o jogo da espátula (1979/1957) assim como, a partir desta fundamental experiência, devemos conceber que cada sessão precisa de um tempo capaz de possibilitar que o paciente saia abrigado e apto a sustentar o intervalo (sem o analista) até o próximo encontro.


O tempo, se não é só tempo-passado com seus grilhões paralisantes, se não é só presente sem perspectiva de caminhar, se não é só futuro quando corremos o risco de voos e devaneios sem pouso; constitui abrigo: sustenta-nos na esperança, na capacidade de esperar. E, enquanto analistas, precisamos cuidar/sustentar a esperança que se esvai no desespero do paciente. Um paciente com pânico vivencia sua crise de angústia como um morrer para sempre: é um mal infinito. Como afirma Winnicott: “Inerente a esse sentimento de desamparo é a natureza intolerável de se experimentar algo que não se sabe quando terminará” (1949, p.327). Entretanto, a crise dura alguns minutos, ele, como outros com outras modalidades de adoecimento recebem o “vai passar”, que pode ser que de nada adiante. De qualquer forma, insistamos, sejamos o outro-guardião da esperança - a evocação do materno cuidador. Uma das funções analíticas é de testemunho, de reconhecimento da dor e de oferta da esperança, desde que venha sob a forma de palavra viva e encarnada, guiada pelo princípio esperança do próprio analista.


Um encontro entre o terror e a esperança

“A análise exige, no mínimo, que busquemos juntos”

Pontalis


Por mais estranho que pareça, penso ocasionalmente que às vezes é mais fácil atender aqueles que chegam nos mostrando de modo explícita sua dor aguda, suas chagas abertas, sua vulnerabilidade: uma visível e temida ameaça de desmanchar-se em pedaços; a agonia fazendo sua aparição. Anestesiados ou lançando gritos lancinantes, seus pedidos de ajuda, mais que isso, de salvação, impregnam nosso corpo, as paredes, o quarto-consultório, lugar que abriga as mensagens que anseiam por serem decifradas. Dão-nos um tipo de trabalho, (porque não esquivemo-nos desta verdade), mas nos envolvem em furacão de dores e silêncios ardentes que obrigam que nossa loucura pessoal seja ativada, colocando-nos em posição de quem é convocado ao cuidado de sobreviventes de catástrofes. Mas, em outros casos, a calmaria oculta o perigo do mar. Inesperadamente somos arrastados por correntes, pegos em desespero por tormentas e ondas gigantescas, ali onde tudo parecia mansidão.


É assim quando atendo Andréa, 70 anos, extremamente intelectualizada, organizada em torno da invulnerabilidade (engessada animicamente) de tal modo que mal posso avistar alguma dor mais severa, apenas o dia a dia: “o fazer análise para se conhecer e ter insights”. É algo que não me faz sentido, mas que a abriga de ameaças de deslizar da casca para o núcleo, este que precisa manter-se indecifrável. Fala com todas as letras que gosta de sua independência, não gosta de depender e eu desconfio que, oculta-se sob a superfície das palavras, uma fragilidade, solo instável, algo muito amolecido que se agarramos desastradamente pode esfacelar-se. Não anseio por sua dependência, mas toureio faz 5 anos para que não se assuste, porque um susto subjaz à tamanha rigidez – um íntimo frágil e delicado. Falo de sua delicadeza que é o atalho possível para comunicar que vislumbro sua fragilidade. Venho assim nesse tempo juntas tal qual Shererazade contando histórias para que não seja assassinada a possibilidade de encontro. Muitas vezes faltam-me fábulas, então escorrem águas turvas, paradas e sem vida –parece então, num extremo de desvitalização vivido pela dupla - que nada acontece. Nessas horas, ambas habitamos o nada. E a sensação de que não estou fazendo nada me invade.


Gosta de assistir documentários sobre animais e me conta de uma veterinária especialista em tartarugas. Chega uma para ser cuidada, tem o casco rachado, profundamente ferida. Conta-me com assombro que com o casco aberto avista-se o pulmão da tartaruga. Compartilho de seu assombro, sem deixar de expressar num esgar de aflição e dizer em espanto: “que horror!” Pois é mesmo aterrorizante!


Depois da sessão, lembro-me de uma paciente de Winnicott (1963, p.225) que, independente, se tornou em sonho, extremamente dependente. Sonha que tinha uma tartaruga com o casco mole, de modo que estava desprotegida e podia sofrer. Mata então a tartaruga para salvá-la do sofrimento intolerável que poderia ter. Desde sempre esse caso de Winnicott me impressionara: como conceber a existência de uma tartaruga sem casco? Que impensável! Que algo próximo da agonia primitiva! E que horror o pulmão revelado! Essa transparência aterrorizadora: essa ameaça de chegar ao núcleo inviolável do ser!


Minha paciente me comunica sua necessidade de chegar a sua vulnerabilidade, mas que a deixa numa relação de dependência tão temida. No programa de TV, a veterinária consegue colocar num buraco do casco, que não conseguira emendar por completo, um pedaço desenhado numa impressora 3D. Minha paciente comunica assim também sua esperança de cura. Mas fico com isso, com todas essas associações e sonhos (dela, entretanto, por mim sonhados), me sinto aprisionada numa relação em que o mais vulnerável se protege de mil roupagens, cascas e cascos para não ser alcançado. Tocar nela é como esbarrar no pulmão: o respirar que mantém o ser vivo.


Aguardo assim novos encontros, guardo em mim o que me viera como lembrança e compreensão: ficam como restos diurnos e espero que num sonho a dois algo mais próximo do essencial delicado seja alcançado.


Andréa interrompe a análise. Brinco que vou buscá-la, caso não volte, luto por ela, talvez movida por comunicação tão sensível ao se aproximar do tempo de despedida. Saio de férias, antes ela já fora e quase me esqueço de minha “brincadeira” de reivindicá-la ao reencontro. Sou então surpreendida por seu chamado: quer conversar, assim, ela retorna. O casco ferido, a prótese 3D sustentou nosso vínculo e brotos de esperança a trouxeram de volta.


Sem Esperança ela não voltaria, sem Esperança o pulmão exposto a levaria à morte.


...Eu sempre sonho que uma coisa gera,

nunca nada está morto.

O que não parece vivo, aduba.

O que parece estático, espera.

Adélia Prado



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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ELLIOT, T.S. Poemas selecionados. Trad. Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.


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FIGUEIREDO, L.C. O paciente sem esperança e a recusa da utopia. In: ______. Psicanálise: Elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003, p.159-189.


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PONTALIS, J-B. Entre o Sonho e a dor. Lisboa: Fenda, 1999.


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______. Textos Selecionados. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993 (1954), p.459-481.



NOTAS

[1] Fatima Flórido Cesar, pós-doutora em Psicologia Clínica pela Puc/SP, pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela USP. Marina F. R. Ribeiro: Psicanalista, Profa. Dra. do IPUSP, professora do programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica.

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